12 March 2015

CAVALGAR O AR


Entre Camden e o Regent’s Park, no norte de Londres, fica a Cecil Sharp House, sede da English Folk and Dance Society e porto de abrigo para 80,000 manuscritos com o registo de canções, danças e costumes tradicionais das ilhas britânicas. Foi aí que Becky Unthank descobriu um farrapo de melodia e texto (“I'll mount the air on swallow's wings to find my dearest dear, and if I lose my labour and cannot find him there, I quickly will become a fish to search the roaring sea, I love my love because I know my lover he loves me”), confiado por uma Mrs Crawford, de West Milton, ao Dorset Book of Folk Songs, publicado em 1958. Um ano depois, entre 1959 e 1960, Miles Davis e Gil Evans gravavam Sketches Of Spain, essencialmente, uma transfiguração jazzística do adagio do Concierto de Aranjuez, de Joaquin Rodrigo, acerca do qual Davis dizia “quanto mais suavemente o tocamos, mais intenso se torna”.



Adrian McNally – teclista, percussionista, compositor e arranjador de The Unthanks e Mr. Rachel Unthank "himself" –, quando colocado perante "I'll Mount the Air on Swallow's Wings [The Loyal Lover]", recordou-se que, por altura da edição de Last (2011), alguém na “Uncut” havia escrito que a banda “encarava a folk music do mesmo modo que Miles Davis via o jazz: como um trampolim para a exploração de possibilidades mais vastas”. Com o modelo de Sketches Of Spain à mão, os parcos dezasseis compassos de "The Loyal Lover", deixaram-se, elegantissimamente, ampliar para uma espantosa suite orquestral de 10 minutos: as vozes de Rachel e Becky flutuam alheias à gravidade e o trompete de Tom Arthurs, criatura de excepção que se declara tão devedor de Ligeti como dos pigmeus da África Central, de Tarkovsky, Godard ou dos "chefs" Ferran Adrià e Heston Blumenthal, opera prodígios. Há vários outros em Mount The Air, coisas que fazem lembrar (e rapidamente esquecer) Björk, Sandy Denny, Portishead (Adrian Utley também andou por aqui), June Tabor, Nico, Robert Wyatt, Van Morrison até. Sim, são dessa ordem de grandeza a infernal "nursery rhyme", "Magpie" (“Devil, devil, I defy thee”), a hipnótica imponderabilidade de "Flutter", o gélido pavor dickensiano de "Foundling", o cinemático "courtly love" de "Madam" dissolvendo-se em "Died For Love"... Álbum do ano, já?

2 comments:

ZMB said...

'acerca do qual Davis dizia “quanto mais suavemente o tocamos, mais intenso se torna”.'

Estive a ouvir o Sketches of spain através do vídeo que disponibilizou no post anterior.
Principalmente nas duas últimas musicas: 'saeta' e 'solea' o seu ritmo, o compasso soa muito rápido, acelarado.
Quero dizer em comparação com o disco em vinil. no meu giradiscos as músicas soam mais lentas. e melhores.

Penso que poderá ser o motor do meu giradiscos que terá uma rotação um pouco mais lenta que as 33 rpm.

João Lisboa said...

"poderá ser o motor do meu giradiscos que terá uma rotação um pouco mais lenta que as 33 rpm"

Ou a configuração para o video do Youtube poderá ter acelerado...