A MODULAÇÃO DA TENSÃO
Em The Joy Of Music, Leonard Bernstein descreve os momentos de frustração e martírio por ele vividos no Upper Dubbing – o terceiro andar do departamento de som dos estúdios da Columbia Pictures, na Califórnia –, quando aceitou compor a banda sonora para Há Lodo No Cais (1954), de Elia Kazan: “Tinha-me deixado arrebatar pelo entusiasmo ao aceitar o encargo de escrever a partitura, na medida em que, até aí, tinha recusado ofertas semelhantes. (...) Sentia-me já tão embrenhado em todos os detalhes da música que ela se me afigurava a parte mais importante do filme! (...) Mas, às vezes [por opção do realizador, do produtor ou dos montadores de imagem e som], um dos temas que tinha sido imaginado com princípio, meio e fim, deveria terminar sete compassos antes do fade out previsto. É evidente que, para um compositor, isto constitui uma decepção, é de enlouquecer. (...) Dei por mim a suplicar por um Sol bemol que, com tanto carinho, tinha escrito...”. Nestas situações, porque a máxima de Hollywood “o compositor deve escutar sempre atentamente a música que gravou antes de seguir para a montagem pois pode ser essa a última vez que a ouve” é implacável, uma das soluções possíveis para evitar dissabores, é o próprio realizador ser também autor das bandas sonoras dos seus filmes.
É um clube relativamente restrito mas com sócios de respeito: foi inaugurado por Charlie Chaplin que, desde As Luzes da Cidade (1931), assinou todas as partituras dos seus filmes e continuou com Satyajit Ray (cerca de 40 títulos), Clint Eastwood (primeiro em Bronco Billy e, depois, de Imperdoável a As Pontes de Madison County, Mystic River, Million Dollar Baby, As Bandeiras Dos Nossos Pais, A Troca, Outra Vida ou J. Edgar), Alejandro Amenabar (Os Outros, Abre Los Ojos, Lengua de Las Mariposas, Tesis ou Mar Adentro), David Lynch (Eraserhead, The Alphabet, Lady Blue Shanghai, Bird Of Flames), Hal Hartley (em nome próprio ou sob o pseudónimo Ned Rifle, em grande parte dos seus filmes), Mike Figgis (Dia De Tempestade, Morrer Em Las Vegas, A Perda Da Inocência, Miss Julie, Time Code, Suspension Of Disbelief) ou Robert Rodriguez (dos Sin City a Kill Bill Vol. 2). Com John Carpenter, ilustre membro da mesma sociedade, tudo aconteceu por motivos bem mais prosaicos: ainda estudante da Escola de Cinema da University Of Southern California, em Los Angeles, tanto ele como os colegas, para a concretização dos projectos académicos, viam-se obrigados a gerir orçamentos mínimos: “Ninguém tinha dinheiro para encomendar uma partitura ou contratar um compositor e uma orquestra. Desenrascávamo-nos como podíamos. Daí que eu tenha começado a compor bandas sonoras muito simples para os nossos filmes. Quando me tornei profissional, exactamente pelas mesmas razões, continuei a fazê-lo. Era rápido e barato”. Alguns desses filmes escolares foram, recentemente, redescobertos pelo responsável do arquivo da Universidade, Dino Everett, mas, na colecção, continua ausente a jóia da coroa, Lady Madonna, filme-tese de licenciatura de John Carpenter, com banda sonora para piano do próprio que, obstinadamente, ele se recusa a ceder.
“Tudo o que é moderno no cinema resulta de investigação tecnológica, metafísica e existencial. A moderna audiovisualidade do cinema tem pouco a ver com as iluminadas artes clássicas da literatura, do teatro ou da pintura – até da música; tem tudo a ver com exploração endoscópica, cirurgia plástica, alteração química, terapia de electrochoques e estimulação nervosa. E, quando o cinema aparenta ser natural, romântico, clássico, é, justamente, quando é mais artificial, mais inumano, mais irreal”, afirma Philip Brophy em 100 Modern Soundtracks (2004), uma das quais é, exemplarmente, Escape From New York (1981), de Carpenter: “No mundo predominantemente bombástico do cinema, uma partitura assente sobre a repetição de uma única nota é improvável. (...) Escape From New York é isso que propõe e sacraliza a sustentação de uma só nota como dispositivo primário de modulação da tensão”.
Desde 1970, com The Resurrection Of Broncho Billy, John Carpenter tem sido o autor das bandas sonoras da maioria dos seus filmes (Veio do Outro Mundo, de 1982, entregue a Ennio Morricone, foi uma das poucas excepções), de Dark Star a O Nevoeiro, Assalto à 13ª Esquadra, Christine ou Halloween, que no subgénero de “terror”, transportam uma poderosa e singular carga expressiva. Passa, agora, a figurar também no seu CV a contribuição para um género a que ainda não se entregara: a banda-sonora para filmes imaginários. Lost Themes, fruto de prolongadas "jam-sessions" com o filho, Cody, entre sessões de jogos de vídeo, é, previsivelmente, uma colecção de mini-soundtracks geradas em baterias de sintetizadores (sempre a sua arma favorita), pura cenografia sonora em demanda de uma narrativa capaz de estruturar as várias sequências e instantes de ansiedade, pânico e beatitude “espacial” que, em temas como "Obsidian", "Abyss" ou "Domain", praticamente sugerem um argumento ímplicito. Um, naturalmente, por cada par de ouvidos que os escutem e que se achem disponíveis para encetar a outra metade do trabalho de que John Carpenter se dispensou nesta espécie de revisão e prolongamento (aqui e ali, redundante) de todas as suas inconfundíveis marcas de autor.
2 comments:
Ler-te pode ser absolutamente reconfortante, a ignorancia que vá dar um passeio e nao me perguntes porque e muito menos usando eu o On-Screen Keyboard, que nao aguento este teclado :)
Thanx ma'am.
:-)
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