LIMPAR O PÓ AOS ARQUIVOS (XXI)
UMA HISTÓRIA DA AMÉRICA
O "Antigo Testamento" da música popular norte-americana foi publicado há trinta anos. Chama-se "Mystery Train" (subtítulo: "Images of America in Rock'n'Roll Music") e o seu autor é Greil Marcus que, honestamente, logo na abertura, reconhece a dívida para com diversos textos sagrados anteriores: "Studies In Classical American Literature" (D. H. Lawrence), "Love And Death In The American Novel" (Leslie Fiedler), "Let Us Now Praise Famous Men" (James Agee), "I Lost It At The Movies" (Pauline Kael), "Democracy In America" (Alexis de Tocqueville) e, "in a way that is still pretty mysterious to me", as "short stories" de Hemingway. A secção dos "profetas" é dedicada ao obscuro Harmonica Frank e a Robert Johnson. Segue-se-lhe o "cântico dos cânticos" em louvor de The Band, Sly Stone, Randy Newman e Elvis Presley. No prólogo, há duas citações cruciais. Uma é de Leslie Fiedler (retirada de "Cross the Border, Close The Gap"): "Ser americano (ao contrário de ser inglês, francês ou outra coisa qualquer), mais do que herdar um destino, é, precisamente, imaginar um destino; pois, se somos realmente americanos, fomos sempre mais habitantes do mito do que da História". A outra é de Robbie Robertson: "A música nunca deveria ser inofensiva".
The Band (Levon Helm, Garth Hudson, Rick Danko, Richard Manuel e Robbie Robertson) era, sem dúvida, o exacto género de grupo que praticamente exigia ser escutado/comentado/analisado sob o imenso pano de fundo da História americana. Ou, como diria Leslie Fiedler, do mito americano: literatura, cinema, política, música, O Sonho. Não foi, certamente, um acaso Martin Scorsese ter aceite realizar "The Last Waltz", o filme sobre o seu concerto de despedida: a música da Band era constituída da mesma matéria que as ficções de Scorsese. Desde as suas origens, no final dos anos 50 — quatro canadianos e um americano (Levon Helm) reunidos, sob a designação de The Hawks, para acompanhar um rock'n'roller do Arkansas (Ronnie Hawkins) megalómano e fora de prazo —, com currículo prévio em ilustríssimas obscuridades (The Robots, Little Caesar & The Consuls, Thumper & The Trombones, Paul London & The Capters, The Rockin' Revols ou The Jungle Bush Beaters), de Gene Vincent a Chuck Berry, Howlin' Wolf ou Fats Domino, de Memphis a New Orleans, corriam-lhes no sangue "os blues, o jazz, a música religiosa, o country & western e uma multidão de verdadeiros heróis do rock'n'roll que tinham absorvido, tocando, de alto a baixo, por toda a coluna vertebral do continente pelo qual se haviam apaixonado" (G. Marcus).
Não seria impossível que The Hawks tivessem permanecido como apenas mais uma banda igual aos Jungle Bush Beaters se, Mary Martin, a secretária de Albert Grossman (manager de Bob Dylan), não lhe tivesse sugerido o nome de Robbie Robertson para acompanhar Dylan nos concertos de Forest Hills e do Hollywood Bowl que se seguiram à publicação de Highway 61 Revisited. Robertson foi instantaneamente aprovado e, a 1 de Outubro desse ano, no Carnegie Hall, era já a futura Band na sua totalidade que dava os primeiros passos na digressão maior que, sobretudo em Inglaterra, provocaria todo o absurdo escândalo estético-político perante o "novo Dylan" eléctrico que o recente "No Direction Home" (Scorsese, de novo...) fulgurantemente documenta. Bob Dylan manter-se-ia por perto: nas lendárias Basement Tapes (o "bootleg" primordial que, apenas quase uma década mais tarde, seria oficializado), e em Music From Big Pink (1968), o assombroso álbum de estreia do grupo, gravado no abrigo rural de Woodstock onde se tinham refugiado.
Como escreveu Marcus "o som é uma mistura de antigas canções folk, jazz de New Orleans, blues do pós-guerra, gospel branco, os Monotones e Motown; (...) a riqueza de Big Pink reside na capacidade da Band interiorizar infinitas combinações da música popular americana sem imitar nenhuma delas. A Band não se refere às suas fontes mais do que nós nos referimos a George Washington quando vamos votar. Mas a relação está lá. (...) Era uma sonoridade nova mas reconhecíamo-nos nela". O grande fresco prosseguiria com The Band (1969), Stage Fright (1970), perderia o pé em Cahoots (1971) e encerrar-se-ia em Rock Of Ages (1972), Moondog Matinee (1973) e Northern Lights, Southern Cross (1975), com diversas e pouco relevantes reencarnações posteriores. Pode, agora, seguir-se-lhe a trajectória completa em A Musical History, sumptuoso livro/cofre de cinco CD + um DVD, repleto de informação biográfica, preciosíssimos inéditos (nomeadamente, do início com Ronnie Hawkins), raridades várias e magníficas fotografias. Aquilo a que é obrigatório chamar "obra de referência". (2005)
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