SEDUZIDA PELO RAPTOR
Não deve existir quem – ateu, agnóstico ou de qualquer confissão religiosa –, à janela de um comboio que saia da estação central de Colónia, não se sinta, subitamente, sem fôlego e incapaz de articular uma sílaba perante o assombroso gigante gótico de pedra que, sobre a cobertura da Hauptbahnhof, vai, esmagadoramente, emergindo até ocupar por inteiro o campo de visão. Sim, a Hohe Domkirche St. Petrus, à beira do Reno, não será a Notre-Dame de Paris nem sequer a catedral de Amiens (à imagem da qual começou a ser construída, em 1248, para acolher as imaginárias relíquias dos não menos fantasiosos Três Reis Magos) mas não é nada difícil compreender o impulso que terá conduzido Rennie Sparks – a metade feminina do casal que, com Brett Sparks, constitui The Handsome Family – a escrever “The cathedral in Cologne looks like a spaceship, like the hand of God falling from the sky”, em "Cathedrals", quinta faixa de Through The Trees, o álbum de 1998 que logrou, ainda que só moderadamente, elevar o grau de notoriedade do duo de Chicago.
É também essa a canção que abre Things Are Really Great Here, Sort Of..., 35 minutos de Andrew Bird relendo 10 canções da Family, justamente no ano em que "Far From Any Road" (uma variação poética "southern gothic" sobre o alucinogénico estramónio, extraída de Singing Bones, 2003), escolhida por T-Bone Burnett para o genérico da magnífica série de televisão, True Detective, lhes oferece um novo e, porventura, decisivo segundo começo. Duas décadas após o primeiro, embora tardio, não poderia ser mais merecido: a particularíssima fusão molecular de "murder ballads", sombras de Poe, imponderabilidades medievais, destemperos místicos do "deep south", pesadelos kafkianos e country primordial que Rennie e Brett confeccionam, há muito deveria ter ultrapassado o estatuto de culto para iniciados. A versão-Bird – prosseguindo a via rural-rústica de Break It Yourself e Hands Of Glory, ambos de 2012 – pertence aquela categoria em que a matéria original se deixa, literalmente, seduzir pelo raptor, a ponto de passar a considerar-se sua. A gravitas do barítono de Brett está, sem dúvida, ausente mas, por entre cascatas de pizzicatti e arcadas dramáticas em atmosfera de celeiro, o recorte neo-clássico do violino de Andrew Bird tudo transfigura.
1 comment:
Eu digo never:
https://www.youtube.com/watch?v=ePIImGMjn_8
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