A IDADE DA INOCÊNCIA
A concepção romântica da música como a arte a cuja condição todas as outras deveriam aspirar foi ferida de morte em 1877, às mãos de Thomas Edison, com a invenção do fonógrafo. Registada em cilindros de cera e, posteriormente, em discos de vinil, objectificada, coisificada, perdia, definitivamente, a aura de entidade incorpórea, ideal, sujectiva, quase imaterial, que a pintura, a escultura ou a literatura jamais poderiam alcançar. Três décadas e meia depois, ao visitar o Salon du Phonographe, dos irmãos Pathé, em Paris, Claude Debussy ainda se interrogava: “Não deveríamos recear esta domesticação do som, esta magia preservada num disco que, por 10 cêntimos, qualquer um pode despertar à sua vontade? Não será isto uma diminuição das forças secretas da arte que, até agora, foram consideradas indestrutíveis?” A imparável história da indústria discográfica no século XX trataria de eliminar tais reticências mas, há dois anos, Beck, com Songbook – 20 partituras originais apenas escutáveis por quem, mesmo que da forma mais livre, as decifrasse e interpretasse –, procurou reverter a trajectória.
Esse apelo de uma idade da inocência situa-o, agora, Neil Young nas tecnologias de registo sonoro de nula fidelidade das cabinas de gravação individual Voice-O-Graph (popularizadas dos anos 40 a 70 do século XX) de que, aparentemente, Jack White, é o possuidor do único exemplar sobrevivente em estado funcional, utilizado para a gravação de A Letter Home. Exactamente o mesmo Neil Young, paladino da luta contra a perda de qualidade do som digital que se propõe combater com o lançamento em Outubro do Pono, um serviço de dowloads em 24-bit 192kHz. Contradição? Nada disso. Em ambos os casos, o que o motiva é a demanda de uma certa pureza e autenticidade primordiais (porventura, apenas imaginárias) que, em A Letter Home, assume a forma de “art project”: menos uma colecção de versões musicalmente rudimentares – com todas as falhas preservadas – de canções de Dylan, Phil Ochs, Tim Hardin, Bert Jansch, Gordon Lightfoot, Willie Nelson ou Springsteen do que uma recuperação de memórias (interpoladas com mensagens dirigidas à mãe, Edna, morta em 1990), bloco de notas de uma viagem no tempo ou uma espécie de adenda contemporânea à Anthology Of American Folk Music, de Harry Smith.
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