30 May 2014

EMBOSCADAS


Quando, em 2011, Merrill Garbus/tUnE-yArDs publicou o literalmente assombroso whokill, prevendo a proverbial metralha acusatória de “saque cultural” a propósito da sua apropriação de padrões rítmicos africanos, cuidou de, à laia de "preemptive strike", interrogar-se publicamente “Que vou eu fazer com isto? Devo pedir autorização? Se tenho medo de pedir autorização, quererá isso dizer que não o deveria fazer? E, se não há ninguém a quem pedi-la, significa que não há problema?” Indo mesmo um pouco mais longe, arriscou o registo provocatório e declarou: “Não me importa se estou a ofender alguém. Não são essas pessoas que me preocupam mas sim aquilo que lhes posso dizer. Até gosto que me acusem de pilhar a música africana se isso me permitir iniciar uma discussão sobre o assunto”. Claro que – para não recuar demasiado no tempo – um século depois de Debussy se ter deixado seduzir pelos gamelãs do Bali, outro tanto de história do jazz (do qual, por sua vez, alguma música erudita se alimentaria), rock’n’roll, samba, reggae, folk-rock e um imenso etc. à volta, é o género de debate que só almas pacientes como Garbus, Paul Simon, David Byrne, Peter Gabriel ou os Vampire Weekend ainda estão dispostas a travar. 



Mas o que Merrill menos esperaria é que Chuck Klosterman (suposta luminária da crítica cultural norte-americana), agoniadíssimo porque o “Village Voice” elegera whokill álbum do ano, decidiu decretá-lo como uma daquelas obras que, com a passagem do tempo, cobrirá de vergonha todos os que, então, o louvaram. Exemplos desse tipo de embaraço, evidentemente, abundam. Mas dificilmente se poderia errar mais o alvo escolhendo whokill – objecto absolutamente singular – para o demonstrar. O que, agora, Nikki Nack deixa ainda mais transparentemente claro: engenhosamente concebido como um roteiro de emboscadas sonoras face ao qual é perigoso abrandar a vigilância, Garbus pula vertiginosamente de um Haiti taquicárdico para uma variação sobre a “Modesta Proposta”, de Swift, tal como Laurie Anderson a poderia redesenhar, inventa o formato da canção-que-muda-de-ideias-a-meio-caminho, desacerta, gloriosamente, formas e conteúdos, e, alçada no baixo elasticamente poderoso de Nate Brenner, incita-nos com o grito de guerra “I come from the land of slaves! Let’s go redskins! Let’s go braves!” 

2 comments:

Nuno Gonçalves said...

Comprei este fds. Não há adjectivos para "real thing".

Ouvi tb umas entrevistas da Merril Garbus no YT e dei comigo a pensar que o "Graceland" deve ser um dos discos de música moderna mais influentes de sempre

João Lisboa said...

"o "Graceland" deve ser um dos discos de música moderna mais influentes de sempre"

Sem dúvida.