13 February 2014

SERPENTEAR POR ENTRE AS CORRENTES


É francamente recomendável não se perder a oportunidade de aproveitar a fugaz abertura do túnel temporal que terá lugar no próximo dia 14, no CCB, e através do qual, o presente e meados de 80 do século passado entrarão, momentaneamente, em comunicação. É bem possível que nem sequer nos cheguemos a aperceber da verdadeira distância, uma vez que os guias de viagem serão os Mler Ife Dada – em comemoração do seu 30º aniversário –, banda-farol daquela época da música portuguesa a que, sem condescendências flacidamente nostálgicas, é obrigatório chamar “de ouro”: eles sempre tiveram um pé no futuro e o outro desgovernadamente por todo o lado. Deixar fugir uma oportunidade destas para, da boca do actual barcelonês adoptivo, Nuno Rebelo, e da cantora Anabela Duarte, conhecer a verdadeira história desses anos, também seria assaz indesculpável.

O que aconteceu em Portugal naquele breve período dos anos 80 que não tinha acontecido antes e – independentemente de ter continuado a existir muito boa música – não voltou a acontecer depois? De onde surgiu aquela explosão de bandas todas diferentes, numa altura que também não era economicamente brilhante nem a alfabetização musical era extraordinária? Vocês que estavam no olho do furacão, que explicação têm?
Nuno Rebelo – Tirámos uma rolha da garrafa. Estivemos engarrafados durante a ditadura e o que era urgente, em termos de música popular, durante a ditadura e naquele período logo após a revolução, era a música de intervenção política. No momento em que isso deixou de ser urgente, aparecemos nós que tínhamos, 14, 15 anos no 25 de Abril. Já não sentíamos essa necessidade de fazer uma música carregada politicamente, mas mais aberta. É uma geração de mudança que tem a memória de ser criança durante a ditadura e que chega à maioridade depois da revolução.



Anabela Duarte – A minha educação sentimental na música foi com os Ocaso Épico que, no discurso que faziam, tinham uma costela muito forte de uma certa portugalidade, numa veia não exactamente política mas de contestação, gozava com a História portuguesa, olhava-a por um ângulo mais obsceno. Eu tinha 17 ou 18 anos, eram os primórdios do Rock Rendez Vous. Depois, houve várias vertentes disso, como os Ezra Pound e a Loucura, do Jorge Ferraz, já com influências americanas, os Bye Bye Lolita Girl, Moeda Noise, Santa Maria Gasolina Em Teu Ventre, Pop Dell’Arte... começaram, nessa altura, bastantes projectos que, do ponto de vista da percepção da música, eram bastante mais rudes, mais viscerais, havia ali qualquer coisa às avessas do que se costumava fazer.
NR – Salvaguardando as devidas distâncias, é semelhante ao que se passou num curto período e que deu origem a gente como Almada Negreiros, Fernando Pessoa, aquele período entre a Primeira República e a chegada da ditadura. Aqui é um pouco ao contrário: é a saída da ditadura mas também é uma época de transição. São estes períodos que permitem alguma efervescência artística.

Na altura, tinham verdadeiramente noção de que o que estavam a fazer era realmente novo e diferente e que iria marcar uma época?
NR – Era isso que estávamos a tentar fazer. Não sabíamos se o conseguiríamos mas o nosso esforço era esse: abordar a pop abrindo-a para outros tipo de música. Coisa que foi feita de modo diferente por outros grupos anteriores a nós. Os Beatles, por exemplo, pelas experiências electroacústicas que fizeram, a utilização de orquestras, distorções na voz...



Vocês não viviam, evidentemente, numa bolha, tinham influências e fontes de inspiração. Mas o que é interessante é que, tanto os Mler Ife Dada como vários outros contemporâneos, conseguiram transformar tudo isso numa linguagem completamente própria, personalizada. Isso surgiu naturalmente, foi procurado?
AD – O Nuno vinha de uma fase bastante anglo-saxónica com os Street Kids e teve um flash criativo com o Pedro D'Orey que aparece com um discurso poético mais surrealista que despertou um outro imaginário. NR – Eu poria as coisas de outra maneira: foi muito importante eu ter conhecido o Jorge Lima Barreto e ele ter-me mostrado muitos tipos de música diferente que abrangiam o planeta todo e também o passado. De repente, conheço o Pedro D’Orey que já sabia isto tudo. É uma espécie de encontro de almas gémeas.

O que é interessante é que isso, no vosso caso, não se transformou na produção de uma música ferozmente experimental mas em algo que podia continuar a chamar-se pop...
NR – Era onde eu me situava e, apesar de estar a descobrir todos esses tipos de música que não conhecia, eu vinha da pop. Não se tratava ainda de dar o salto para outro lado mas de absorver na pop aquilo que estava a viver, musicalmente, na altura.
AD – A pop foi beber a muitos dos experimentalismos da altura mas o contrário também é verdade, muitos criativos da área da música experimental se alimentaram dela. Na pop é onde se fazem as experiências todas.



É a lama primordial de onde saíram os bichos todos...
NR – Fundamentalmente, é uma música de não estudiosos da música, sem diploma. Até pode ter, desde que não se manifeste demasiado.

À distância de 30 anos, qual é a vossa retro-perspectiva do percurso dos Mler Ife Dada?
NR – Isso era toda uma tarde de conversa. No início, é a tal fase com o Pedro D’Orey, o EP Zimpó, que começa com improvisação total. Mas para improvisar canções: aparecia uma base instrumental e, logo a seguir, o Pedro criava uma vocalização com letras loucas. Gravávamos, chegávamos ao fim e tínhamos uma canção. Reaprendíamos a tocar aquilo e cristalizavamo-las. A passagem do Pedro foi importante mas meteórica. Ganhámos o concurso do Rock Rendez Vous mas, quando o EP sai, o Pedro já está a viver no Brasil. O segundo momento é de transição, com um novo cantor, o Filipe Meireles. Criam-se mais duas ou três canções – como o "Valete (de Copas)" e o "Oito Doces" – mas, como o Filipe teve de sair para o serviço militar, com a entrada da Anabela e dos gémeos Garcia, acontece o período de maturidade da banda que dá origem ao Coisas Que Fascinam. Aquilo que mostrávamos nesse disco – um grupo aberto a muitos estilos de música – no Espírito Invisível, tentei ir mais longe: se, no primeiro, fomos até aqui, neste segundo, vamos ser ainda mais experimentais e ainda mais comerciais! Abrir para os dois lados.



E qual era a fórmula para isso funcionar? Acentuar o experimentalismo e não perder o pé?
NR – Acentuar o experimentalismo, perdendo o pé! Eram temas de improvisação total curtinhos, na sua maioria – temas de um minuto que funcionavam quase como separadores das canções –, e as canções propriamente ditas em que, como na "Dance Music" ou na "Walkman Music", a ideia era fazer coisas mais comerciais.
AD – Na "Dance Music", a música poderá ser mais comercial mas a letra é completamente anti-comercial. Nesse disco, o Nuno estava já bastante virado para o lado mais experimental, É por esse motivo que, agora, queremos tirar todo o partido dele. Se, na época, a radicalização dos extremos não funcionou e foi até menos apreciado pela crítica, vamos dar-lhe uma nova oportunidade.

Mas vocês nunca deixaram de ser "darlings" da crítica musical...
NR – É verdade. Mas o segundo disco teve um impacto negativo na banda. O fim dos Mler Ife Dada deve-se um bocado a esse fracasso.

No grande aquário da música moderna portuguesa da altura, que espécie de peixe eram vocês? 
NR – Uma enguia. Anda na água doce e na água salgada e serpenteia por entre as correntes.

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