22 January 2014

LITERATURA 


Em 2013, Morrissey ia morrendo várias vezes. Infecções diversas, suspeita de problemas oncológicos, uma pneumonia dupla, anemias, imunidade a pique, acidentes de automóvel e a consequente anulação de dezenas de concertos preencheram quase por inteiro aquilo para que foi justamente criada a expressão annus horribilis. Mas a sua morte mais recorrentemente anunciada foi a propriamente artística: o último álbum Years Of Refusal, data de Fevereiro de 2009 – e, como os dois ou três imediatamente anteriores, era uma montanha russa de pérolas e cascalho –, do que foi, avulsamente, revelando apenas "People Are The Same Everywhere" merece integrar o cânone (misantrópica petulância obrigatória: “Set me aside, you'll find people are the same everywhere, hoist me from the herd and people are the same everywhere”) e duas ou três provocações politicamente incorrectas também não ajudaram muito. Se algo poderia ser salvo, foi a Autobiography, publicada na Penguin Classics, que o conseguiu fazer e que, segundo ele, se transformou num “sucesso maior do que qualquer álbum que tenha editado”. Daí a anunciar que um primeiro romance está no prelo, foi só um pequeno passo.


Devemos entrar em alerta vermelho e recordar que o sublime "songwriter" Leonard Cohen é um romancista medíocre? Disparamos os alarmes e não evitamos pensar no óptimo Nick Cave (também excelente guionista para o cinema) e no falhadíssimo And The Ass Saw The Angel? Por Morrissey, nunca se deve pôr as mãos no fogo, mas, no caso, é preferível evocar as Chronicles, de Bob Dylan. Tal como acontecia na totalidade deste, o primeiro terço da autobiografia de Morrissey é da mais excelente literatura (repito: literatura) recentemente escrita em inglês: as memórias da dickensiana Manchester da infância e juventude, os horrores da escola pública britânica e a sufocante teia familiar, tudo desfila em registo cronologicamente desordenado de quase-Tristram Shandy em que a história individual se confunde com a da música, da literatura, da televisão e do cinema e o retrato-mosaico de uma esquálida Albion é uma vertigem impossível de apagar. Se o resto, dedicado a expelir fel sobre o universo e meia dúzia de ódios de estimação, não lhe está à altura, isso é até capaz de ser um bom sinal: o que Morrissey gosta é de escrever, escrever, escrever, e para os ajustes de contas reserva a pena menor que lhe basta embeber em veneno. 

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