Domingo, 27 de Outubro. “Sunday morning, and I'm falling, I've got a feeling I don't want to know”. Em poucas horas, mal a notícia da morte de Lou Reed, aos 71 anos, se espalhou, se isso servisse para alguma coisa, bem poderiam ter-lhe dito “watch out the world's behind you”: em brevíssimos "tweets", praticamente, sem palavras (Ryan Adams escreveu apenas “Lou Reed”), anónimos e notáveis, por todas as esquinas e becos das redes de comunicação, procuraram aliviar a irremediável sensação de perda. Lloyd Cole desabafou “Sem ele não existiria Bowie tal como o conhecemos. Eu? Seria provavelmente professor de Matemática” e até o cínico profissional, Luke Haines, não conseguiu dizer mais do que "Fuck, shit, Lou Reed. No". Não, o dia não era, de todo, perfeito. E Lou Reed também não.
Na segunda-feira, pelo meio dos inúmeros textos com que, dolorosamente, se faria o luto, o “Guardian” republicaria uma entrevista de Maio de 2003, realizada por Simon Hattenstone, em Stuttgart. Verdadeiro fã-desde-pequenino (mais exactamente, desde os nove anos, quando "Walk On The Wild Side" – a tal canção que, nos EUA, teve de ser editada, eliminando a frase “But she never lost her head, even when she was giving head”, para que Reed pudesse registar a sua única presença no top 40 do “Billboard” – lhe virou o seu pequeno mundo do avesso), Hattenstone descreve um penoso exercício de humilhação do qual estava muito longe de ser a primeira vítima. Enxotado da presença do músico durante a sessão de fotografia, quando, após mais outra hora de espera para o ensaio de palco, lhe faz uma pergunta sobre os textos de The Raven (publicado nesse mesmo ano), acidamente, ele responde-lhe “Não me vai pedir que lhos explique, pois não?” Interroga-o acerca da relação estética entre ele, Iggy Pop e David Bowie, nos anos 70, e ouve “Não faço a mínima ideia do que está a falar”. E, várias outras não-respostas tortas mais tarde, no momento em que, já praticamente em lágrimas, lhe confessa “Eu era um fã seu...”, é atingido por um intimidativo “Era?!!!...”
Estava lá tudo, desde o início, com os Velvet Underground. Primeiro, apenas Reed e John Cale, depois, os efémeros Angus MacLise e Walter de Maria e, enfim (antes de se iniciar o processo de expurgo constante que foi a história da banda), Nico, Sterling Morrison e Maureen Tucker, sob a tutela estética de Andy Warhol, na performance multimédia Exploding Plastic Inevitable – onde, como definia, aterrado, o “Chicago Daily News”, “desabrochavam as flores do mal”, nada era deixado à imaginação: “Estávamos em palco com chicotes, holofotes gigantes, seringas, arame farpado, enormes crucifixos de madeira. Antes de nós, quando se ouvia música, divagava-se ou associava-se aquilo em que se estava a pensar. Connosco havia uma imagem muito clara do que pretendíamos transmitir. O que chocava era a imaginação não ser suficientemente poderosa para conceber a ideia de pessoas chutando-se em palco, a ser crucificadas ou a lamber botas de cabedal”, contava Ronnie Cutrone, personagem da Factory, de Warhol, que, ao descrever o desempenho dos seus pupilos, afirmava “Nada poderia parecer tão estranho e tão novo sem que estivéssemos a rebentar alguma barreira. ‘É como a separação das águas do Mar Vermelho’, disse-me Nico, uma noite”.
Puríssima verdade: em pleno banho de pétalas do "flower power", os Velvets odiavam hippies (e diziam-no em voz alta), aos êxtases aromatizados a incenso preferiam a áspera dureza S&M, e, através de um álbum – The Velvet Underground & Nico, 1967 – que, nos primeiros cinco anos de publicação, mal vendeu 30 000 exemplares (em 2006, seria incluído na Library Of Congress), inventaram, de um só golpe, a estética punk, a ética indie e abriram de par em par a via para o art-rock. Porém, o “New York Times” descrevia-os como “Andy Warhol’s jazz band” e “uma combinação de rock’n’roll com dança do ventre egípcia”, e o respeitável Richard Goldstein, no “Village Voice”, embora concedendo que se tratava de “um grupo importante” e que "Heroin" eram “sete minutos de autêntico rock’n’roll dodecafónico”, insistia em caracterizá-los como “uma banda de que não é fácil gostar” e decretava que algumas das faixas eram “aborrecidas e repetitivas”, a voz de Lou soava aflitivamente ao “Bob Dylan inicial”, "There She Goes Again" era uma “cópia sem vergonha” de "Hitch Hike", dos Rolling Stones, e "Black Angel’s Death Song" e "European Son" chegavam a ser “insuportavelmente pretensiosas”.
A “pretensão” de Lou Reed, entretanto, era outra: “Eu não sou negro, não toco soul. Não sou um 'hillbilly', não toco country & western. Não ando pelas esquinas a cantar doo-wop. Era mais fácil pensarmos ‘vamos lá a ver como soamos’. E dei bastante importância às palavras na música, o que nunca tinha ouvido fazer antes. Isso parecia muito natural para alguém que, como eu, estudava literatura inglesa. Via todos aqueles 'songwriters' que só escreviam acerca de um domínio de experiências muito restrito. Parecia-me bastante evidente e muito fácil abordar as canções como um romancista, a ponto de não compreender o motivo por que ninguém o tinha feito. Peguemos no Crime e Castigo e transformemo-lo numa canção de rock’n’roll! Pode existir escrita literária a sério numa canção de rock se conseguirmos fazê-lo sem perdermos a noção do ritmo. Aquilo sobre que escrevo não pareceria nada de invulgar se surgisse num livro ou num filme”. E, apesar de, confessadamente, adorar Archie Shepp, Cecil Taylor, Don Cherry e Ornette Coleman – os dois últimos tocariam com ele, respectivamente em The Bells (1979) e The Raven –, um lema (que nunca seguiu, realmente, à letra) orientava-o: “Um acorde serve muito bem. Dois acordes é ir já longe. Três acordes e caímos no jazz”.
Essa espécie de primitivismo estético que dissimulava uma obsessão pela altíssima fidelidade, prosseguiria até ao fim da sua permanência nos VU e na posterior trajectória a solo que, sem o trampolim da produção de David Bowie em Transformer (1972), nunca saberemos se e como teria existido.
Tudo o que viria a seguir – quase sempre controverso, raramente consensual – fez-lhe ganhar e perder adeptos. Nomeadamente, o lendário crítico Lester Bangs que, em 1975, na “Creem”, transcrevendo uma entrevista-sessão de pugilato verbal com Reed significativamente intitulada “Let Us Now Praise Famous Death Dwarves”, escreveria: “Lou Reed é o tipo que injectou dignidade e poesia e rock’n’roll na heroína, nas anfetaminas, na homossexualidade, no sadomasoquismo, no homicídio, na misoginia, na apatia e no suicídio e, a seguir, tratou de demolir todos estes feitos transformando tudo numa monumental piada de mau gosto”. Em causa estavam os álbuns Berlin (1973) e Metal Machine Music (1975). Dezassete anos mais tarde, numa conversa com o escritor britânico Neil Gaiman que, surpreendentemente, decorreu sem atritos (embora Gaiman, que roubara a entrevista a Martin Amis, fizesse questão de recordar o proverbial mau feitio no primeiro concerto de Lou a que assistira em Londres: “No final do concerto, disse-nos que tínhamos sido um público tão miserável que não merecíamos um encore. E não o fez“), ele daria a sua interpretação dessas flutuações de fidelidade: “Algumas pessoas ficaram para sempre paradas nos Velvet Underground, no Transformer ou no Rock’n’Roll Animal. Algures por aí. Enquanto eu estava apenas de passagem”.
Uma imperial passagem que, foi oferecendo diversos exemplos daquilo para que foi criada, justamente, a palavra “seminal”: Street Hassle (1978), The Blue Mask (1982), o portentoso New York (1989) – que, caso fosse ainda necessário, o instalaria no mesmo panteão dos poetas da cidade já habitado por Martin Scorsese e Woody Allen –, Songs For Drella (1990), o requiem por Warhol, executado a quatro mãos com John Cale, Magic And Loss (1992), Live MCMXCIII (1993), registo da fugaz reunião dos VU, e o magnífico duplo conceptual, The Raven (2003), inspirado pela obra de Edgar Allan Poe e ponto de encontro para quase três dezenas de "guest stars", de Bowie, Ornette, The Blind Boys Of Alabama e Kate & Anna McGarrigle a Steve Buscemi, Willem Dafoe ou a já então sua companheira, Laurie Anderson.
Cruzou-se também, no teatro, com Robert Wilson, em Time Rocker (variação de 1996 sobre A Máquina do Tempo, de H. G. Wells) e POEtry (que, em 2000, seria o cadinho de The Raven; no cinema, com Wim Wenders (Faraway, So Close!, 1993) e Wayne Wang e Paul Auster (Blue In The Face, 1995, e Lulu On The Bridge, 1998); e, encarnando, por duas vezes, a tão odiada personagem do entrevistador, conversou com o seu herói literário, Hubert Selby, e com o fã de longa data, Vaclav Havel, na altura, presidente da (ainda) Checoslováquia recém-democrática, ambas publicadas na recolha de textos, Between Thought And Expression (1991). Na introdução desta última, conta como, na véspera de partir para Praga, tinha estado presente no estádio de Wembley, num concerto de homenagem a Nelson Mandela, dois meses após a sua libertação. Não chegou a encontrar-se com ele, viu-o apenas pela televisão. Mas interrogava-se: “Aos 71 anos, tinha um aspecto incrível. Como eu gostaria de, com essa idade, estar como ele...”
8 comments:
Bom texto. Parabéns.
New York é o meu disco, se tivesse de escolher só um...
Sem uma única referência a música vanguardisto-destrutiva. Realmente.
Realmente.
Magic and loss, imediatamente atrás.
bem escrito.
concordo, "magic and loss" é fantástico.
...para guardar na pasta das "coisas boas" para revisitações futuras.
Não me lembro se foi aqui en su casa ou noutro lado qualquer que eu disse que sempre achei que o Mandela tem uma voz magnífica. A verdade é que sempre o escutei nessa medida. A verdade continuada é que ainda hoje, quando escuto aquele rapaz dos Fine Young Cannibals, me recordo dele.
Excelente texto.
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