06 November 2013

IMATERIAL

Retiro Ferro de Engomar (1930)

Faz dois anos no próximo dia 27 que, em Nusa Dua, uma ilha indonésia de Bali, o VI Comité Inter-Governamental da UNESCO reconheceu o fado como Património Cultural Imaterial da Humanidade. A pátria explodiu de orgulho e regozijo e televisões e jornais fizeram eco do luso júbilo: “Se a troika quisesse levar o fado não podia, é nosso!”, proclamava-se, pela madrugada, no Museu do Fado; “Vai contribuir para que as atenções do mundo se voltem para um dos emblemas da nossa cultura e do nosso talento”, exultava o, então, ainda Secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas; e António Costa, preparando-se para ser reeleito Presidente da CML, reconhecia tratar-se de “uma homenagem que nos traz grandes responsabilidades no que toca ao plano de salvaguarda”. Tinha toda a razão e nem seria necessário recordar a interminável e penosa saga da aquisição pelo Estado do espólio de 5000 discos do coleccionador britânico, Bruce Bastin, para o compreendermos.

Restaurante Ferro de Engomar (1938)

Concentremo-nos, porém, no que, em Lisboa, o Fado e os Fadistas, Eduardo Sucena escrevia: “No dealbar do século XX, (...) o fado lograra já libertar-se, em grande parte, das áreas marginais, instalando-se nas sociedades recreativas (...) Mas o processo do seu saneamento começara muito antes (...), com a saída para as hortas, aos domingos e dias santos, de cantadores e simples apreciadores”. E, como invariavelmente acontece em todas as histórias do fado, seguia-se uma extensa enumeração desses santuários de Lisboa-fora-de-portas, “locandas largamente concorridas” – para onde os lisboetas se dirigiam, “utilizando os mais variados transportes, desde os burros de aluguer do Poço do Borratém e do Arco do Bandeira, até à carruagem, passando pela caleche, pela tipóia, pela vitória e pelo breque” –, hoje, praticamente todos desaparecidos.

Retiro Ferro de Engomar (c.1930). Maria do Carmo Alta acompanha à guitarra Maria Alice (que se estreou como profissional no Retiro Ferro de Engomar), nome artístico de Glória Mendes Leal de Carvalho, casada com Valentim de Carvalho, dono da editora discográfica com o mesmo nome.

Sobrevivia ainda um, no nº 439 da Estrada de Benfica, o “Ferro de Engomar”, assim chamado devido à forma do terreno da quinta original onde se situava, a curta distância da ribeira de Alcântara que, no percurso entre a Brandoa e o Tejo, por ali passava. Esse ancestral “lugar mítico” (como o designava Vítor Pavão dos Santos, numa conversa com Alfredo Marceneiro publicada em “O Jornal”, de 8 de Julho de 1982), em 1918, foi convertido em retiro onde se cantava o fado às segundas, quartas e sábados, por Maria do Carmo “Alta” – alcunha usada para a distinguir de outra célebre cantadeira da época, Maria do Carmo Torres –, costureira, fadista e guitarrista, desde os 11 anos (estimulada pelo vizinho da frente, Teófilo Braga), uma das primeiras fadistas-fora-de-portas. Vinte anos depois, ela e a sócia, também fadista, Maria Alice, trespassariam o retiro onde não se voltaria a cantar o fado mas que, enquanto restaurante, resistiria à demolição, preservando a memória e o nome, e instalando-se no piso térreo dos novos edifícios. Até 5ª feira da semana passada. Desde 1 de Novembro, feriado extinto, resta só, com pena suspensa, o pequeno café homónimo que lhe está colado. A troika não nos levou o fado mas contribuiu decisivamente para que uma das suas incubadoras históricas desaparecesse. O património cultural está cada vez mais imaterial. 

3 comments:

alexandra g. said...

Caralhos fodam a imaterialidade, essa renda dos sem corpo e medalha ao peito...

João Lisboa said...

Uau!

Luís André Cruz said...

"e agora, fora de portas/ só há chalés construídos":
http://www.youtube.com/watch?v=TgHQSmzmaHA