29 October 2013

MATT, TOM E O BONECO DE NEVE


Segundo o Génesis, Abel, pastor de ovelhas, e Caim, lavrador, filhos dos pais fundadores, Adão e Eva, desentenderam-se porque, tendo Caim feito “do fruto da terra uma oferta ao Senhor” e Abel levado como homenagem “os primogénitos das suas ovelhas”, “o Senhor atentou para Abel e para a sua oferta, mas para Caim e para a sua oferta não atentou”. Existissem já no início dos tempos as primeiras páginas do “Correio da Manhã” e, no dia seguinte, poderia ter-se lido que, “estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou”. Qualquer Saramago vulgar, prestando um péssimo serviço à causa do ateísmo, tenderá a erguer-se, irado, invectivando Jeová ao aperceber-se que este, injustissimamente, pune Caim, expulsando-o para “leste do Paraíso”. Fará mal: de contrário, não teríamos, pelo menos, um óptimo filme de Elia Kazan (East Of Eden, 1955), extraído da obra homónima de Steinbeck, e sabe-se lá que nome teria escolhido para si a banda que gravou Mercator Projected (1969) e Snafu (1970). Mas, muito pior do que não ter entendido que o que estava realmente em jogo nesse relato mítico era o conflito histórico entre pastores nómadas e agricultores sedentários, seria ainda ter-nos privado de uma testada matriz de análise sempre à mão para tudo o que tenha a ver com as (frequentemente) problemáticas relações entre irmãos. 



E, para esse efeito, não existe "case study" mais apropriado do que The National: dois pares de irmãos – Scott e Bryan Devendorf, Aaron e Bryce Dessner (gémeos). Só Matt Berninger ficava fraternalmente desemparelhado. Até ao dia em que, preparando-se a banda para a digressão de High Violet, o mano 9 anos mais novo, Tom Berninger, se lhes juntou na qualidade de "roadie". Porém, com uma missão paralela: ele, "metalhead" para quem a música dos National não passa de “pretentious bullshit”, ele, o "underachiever" de uma família de gente bem sucedida que não tem mais para apresentar como CV do que From The Dirt Under His Nails e Wages of Sin – dois filmes domésticos de terror-série-abaixo-de-Z –, ele, o irmão desajeitado, gorducho e bebedolas do belo Matt (também amigo do copo mas com suma elegância), iria rodar um "rockumentary" sobre o grupo e a tournée. As tarefas de "roadie" foram, inevitável e, por vezes, embaraçosamente, desleixadas, mas Mistaken For Stangers (Doclisboa’13, a 29 Outubro e 2 de Novembro, no S. Jorge), o filme, acabaria por ser concluído: menos documentário do que exercício audiovisual de psicoterapia familiar, por entre incipientes tentativas de entrevistas (mas não façamos pouco de perguntas como “Levam a carteira para o palco?” – identicamente interrogado, há anos, Tom Waits respondeu com "à propos": "Nunca se deve levar a carteira para o palco. Não se pode tocar com dinheiro no bolso. Há que tocar como se precisássemos do dinheiro"), imagens de actuações e confusões de bastidores, se fosse intitulado apenas Matt & Tom não seria disparatado. Até porque, por outras palavras e imagens, bem poderia ilustrar o que Dylan Thomas escreveu: “It snowed last year too: I made a snowman and my brother knocked it down and I knocked my brother down and then we had tea”

2 comments:

alexandra g. said...

Suponho que beberam chá num copo mas, como habitualmente suponho tudo às avessas, ok.

Bolas, o camerado escreve bem como o car eh aças :)


p.s. (passem as letrinhas) - continuo a lê-lo sem ouvir metade do que diz :)

João Lisboa said...

"Suponho que beberam chá num copo"

O autor não especifica. Mas prefiro imaginar uma caneca. De barro.

:-)