CÂMARA ESCURA
Elvis Costello não se fica por meias palavras: “Se não gostam de escutar June Tabor, melhor seria que desistissem de ouvir música”. De facto, a existirem casos em que um certo fascismo estético se justifica, June Tabor é bem capaz de ser um deles. Experimentem, por exemplo, recorrer ao vosso bom amigo YouTube e procurem “June Tabor sings Lili Marlene”. Durante os quase dois minutos iniciais (no concerto “Daughters of Albion”, da BBC4), June conta a história dessa canção. Provavelmente, não repararão de imediato mas, já aí, na articulação das palavras, nas pausas, acentuações, respirações, é de música que se trata. E, logo a seguir, desde o instante em que pronuncia “Vor der Kaserne, vor dem grossen Tor...”, por um milhão de vezes que tenhamos escutado o texto de Hans Leip musicado por Norbert Schultze, a voz que, agora, o interpreta apossa-se dele e fá-lo como se fosse a primeira. Para ela, trata-se de uma espécie de compromisso ético/estético: “Não tem a menor importância de onde provém uma canção. Desde que seja uma boa canção, tenha um texto forte e me fale directamente, é-me completamente indiferente o facto de ser muito recente ou muito antiga. Se mexer com as minhas emoções, sei que vou ser capaz de a interpretar. Porque é isso que eu faço: sou uma intérprete que procura partilhar as sensações que uma canção me proporciona. Tenham as canções seiscentos anos ou apenas dois. A melhor interpretação é a que soa como se fosse a primeira vez que estivéssemos a cantar aquela música. Se parecer ser apenas mais uma canção, é porque estamos a prestar-lhe um mau serviço”.
Huw Warren (piano) e Iain Ballamy (sax soprano e tenor) que, em trio com ela, gravaram para a ECM o recente e belíssimo Quercus – na verdade, tal como já sucedera com Aleyn (1997), o registo de um concerto de 2006, no Anvil, em Basingstoke, do qual foram cirurgicamente extraídos todos os vestígios de público – e o virão apresentar no Teatro Maria Matos na próxima 4ª feira, 25 de Setembro, confessam que, de June, aprenderam a “evitar tudo o que, numa música, não tenha justificação para lá estar ou que apenas surja por motivos convencionais”, bem como a “procurar que a voz e o sax funcionem como um só, mais do que fazer solos complexos”. Não ecoam senão o que ela afirma acerca de como encara a própria voz (“Se eu quisesse, podia ornamentar uma canção até fazê-la desaparecer ou cantar soul, mas isso não me diz nada, é só técnica. Da forma como canto, prefiro ser mais directa, transmitir emoções sem as dissimular”), esse assombroso instrumento de luz e sombras, tão capaz de, qual câmara escura, revelar a natureza profunda de Richard Thompson, Ian Curtis, Lou Reed e Costello como da Idade Média, dos textos de Shakespeare ou Robert Burns ou das vetustas trevas da tradição popular britânica e europeia. Se lhe perguntarem qual o álbum que prefere, responderá que é An Echo Of Hooves (2003), colecção de baladas recolhidas por Francis James Child, no final do século XIX. Não acreditem: a verdade é que, das mais de duas dezenas das suas gravações, ninguém de bom senso se atreveria a escolher uma e a relegar todas as outras para segundo plano.
6 comments:
E fique sabendo que este texto (não lido antes de hoje) é de tal forma emocionante que não o vou comentar.
Sendo que:
raramente classifico um texto como emocionante. Para o ser, tem que ultrapassar fronteiras que se instituíram para a palavra e isso é difícil, muito. Assim de repente, sem que peça à minha memória um esforço, as três coisas de ler que classificaria como emocionantes são: este texto, como já sabe, uma nesga do que aparecia ontem no Público sobre os últimos momentos do António Ramos Rosa (e que transcrevi para o meu blogue) e o que a Ana Cristina Leonardo escreveu quando o Manuel António Pina se lembrou de morrer.
Em comum? O que transcende o individual e isso se sente pois, de tão universal, melhor chega a nós (a excepção é feita àqueles escritos directamente feitos para cada um de nós mas por gente que conhecemos pessoalmente, o que tem os seus inconvenientes, ou sedativos, não interessa agora).
A Ana C. L. recorreu a pequenos versos que diluiu na sua prosa, o texto de ontem no Público devolveu-nos parte fundamental da vida de um poeta (não acredito lá muito em despedidas), o seu texto faz, também, exactamente aquilo que tão maravilhosamente cita:
"transmitir emoções sem as dissimular"
Prescindimos todos, em abono da verdade e com palavras pelo meio, deste silêncio sem arranjos florais.
Era isto, ontem.
É isto, hoje :)
Corrector:
Prescindimos todos, em abono da verdade e com palavras pelo meio, de um silêncio que venha com arranjos florais.
Está a ver no que dá cantar a Lili Marlene sem voz para tal, está? (trocando a letra toda, passando vergonhas, pedindo mil perdões em público :)
Oh la la!...
(por acaso, gosto mais de mim quando os maus sentimentos borbulham à superfície)
:-)
Belíssimo post, João Lisboa (o comentário da alexandra g. incluído).
Há uns dias, escutando um dos seus discos, escrevi:
O melhor que se pode dizer de quem canta, é: quando o/a escutamos, acreditamos. Assim sucede com June Tabor: a sua voz é a verdade.
(é quase impossível escolher um, concordo, mas, sem relegar qualquer um dos restantes para segundo plano, permita-me referir, a título muito pessoal, «Apples»)
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