RELAÇÕES IMORAIS
Como diz Michel Chion em La Musique Au Cinéma, “A história das relações entre música e cinema é, certamente, e a isso teremos de nos resignar, imoral. (...) A nossa consciência racional e o nosso apreço pelo trabalho bem feito indignam-se quando uma determinada música acrescentada no último momento, escrita numa semana e recorrendo a uma retórica retrógrada, por uma espécie de acaso feliz, pelo engenho da montagem e pelo ‘dedo’ de um engenheiro de som, se vão inscrever no corpo de uma obra-prima, se vão converter no coração dessa estátua, como um coração de sopeirinha numa Vénus de mármore”. Que a inversa também é verdadeira, se não tivéssemos reparado antes, ficámos, definitivamente, a sabê-lo quando, há oito anos, a Ipecac publicou o prodigioso duplo de Ennio Morricone, Crime And Dissonance, preciosa recolha de radicais experimentalismos – fantasmagorias electrónicas, libérrimas improvisações, "musique concrète", atonalismos com o freio nos dentes, jazz esquartejado e colagens para orgasmo e taquicardia – generosamente oferecidos pelo mestre, entre 1969 e 1974, às subespécies dos "gialli", pornolixo "light" e outros produtos do catabolismo cinematográfico. E o mesmo se poderia dizer, por exemplo, das "electronic tonalities", de Louis e Bebe Barron, para O Planeta Proíbido, das partituras de Les Baxter para A Queda da Casa de Usher (de Corman), de Leonard Rosenman para Viagem Fantástica, ou de Bruno Maderna para La Morte Ha Fatto l'Uovo.
É nesta micro-linhagem paralela que se inscrevem tanto o filme de Peter Strickland, Berberian Sound Studio (2012), como a banda sonora homónima agora editada, assinada pelos Broadcast (que será, talvez, a sua última gravação, após a morte de Trish Keenan, em Janeiro de 2011): história de um ensimesmado técnico de som britânico que, nos anos 70, é contratado para, em Itália, se ocupar dos efeitos sonoros do que, à partida, ignora ser um "giallo", o envolvimento activo, em atmosfera de máfia kafkiana, na produção da atmosfera de terror acaba por não exercer o mais desejável dos efeitos no seu espírito. A música para Il Vortice Equestre, o filme dentro do filme (de que apenas nos é dado ver o genérico inicial), foi aquilo de que se ocuparam os Broadcast – descendentes do minimalismo dos Young Marble Giants, meios-irmãos dos Stereolab e Pram, e devotos do ignorado e lendário álbum único dos United States of America (1968) que encaravam como a sua bíblia –, quase idealmente talhados para ela: o jogo de espelhos entre "giallo" e reapropriação contemporânea ironicamente opressiva do género é perfeitamente reflectida na sequência de 39 fragmentos sonoros que, sem que verdadeiramente nos apercebamos das costuras do "cut-up", opera por acumulação de sentidos, contrastando motivos, repetindo-os, distorcendo-os e, no processo, montando uma ficção alternativa inteiramente autónoma que, em simultâneo, homenageia sem vassalagem os antepassados Krzysztof Komeda, Fabio Frizzi, Goblin, Gene Moore ou Andrzej Korzyński. E também, mais ou menos subliminarmente, Cathy Berberian, a sobrenatural voz e musa de Luciano Berio.
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