11 April 2013

CONTRA A AUTENTICIDADE


Numa das emissões da sua “Theme Time Radio Hour”, Bob Dylan qualificou Leadbelly como “o único ex-preso que gravou um álbum de músicas para crianças” e Tom Waits continua a ver nele “uma inesgotável fonte de música”: “Podia tocar concertina ou contar as histórias da avó. Era como se fossem álbuns conceptuais ou álbuns de fotografias com retratos de infância. É uma história da América nessa época. O sapateado do Leadbelly soava como um solo de bateria do Chick Webb. Um par de sapatos e o chão do estúdio chegavam”. E adverte: “É o tipo de coisas que, se fossem gravadas hoje, era preciso ter muito cuidado para garantir que não se gravava só o osso e se deitava fora a carne”. A verdade, porém, é que, quando, em 1933, os etnomusicólogos John e Alan Lomax o “descobriram” na tenebrosa penitenciária de Angola, na Louisiana, e se dispuseram a registar o seu reportório de blues, gospel e folk, tinham ideias muito assentes acerca do que era “osso” e “carne” e do que deveria ser considerado “autêntico”: Leadbelly, para além do material tradicional, gostava de interpretar os êxitos populares da época mas preto norte-americano que era preto norte-americano só estava autorizado a cantar blues, gospel e afins. E, ao conseguirem a sua libertação, no ano seguinte, o que lhe possibilitou apresentar-se em concertos, em Nova Iorque, proibiram-no de usar o fato completo janota que ele preferia e convenceram-no a apresentar-se de jardineiras: era lá possível defender a genuinidade de "Good Night Irene" ou "Midnight Special" de outra forma? 



Os escrúpulos autenticistas não se terão extinguido de vez mas – entre muitos outros – sinais como a exposição do Nordiska Museet de Estocolmo (um museu das artes, tradições e história cultural da Suécia), em 2001, dedicada aos ABBA, ou as frenéticas miscigenações que a emergência da "world music" proporcionou deixam poucas dúvidas de que a sua importância não tende, definitivamente, a crescer. Dêem-me Duas Velhinhas, Eu Dou-vos O Universo, álbum de 26 recolhas musicais realizadas por Tiago Pereira um pouco por todo o país, entre Março de 2011 e Novembro de 2012 (download legal e gratuito aqui), através do próprio título, enuncia, implicitamente, o seu programa: inspirado pela frase de DJ Spooky, "Give me two records and I will make you a universe”, coloca, de imediato, em cima da mesa (de mistura) o direito de, a partir da matéria musical capturada, poder reconfigurar espaço, tempo e memória, e contaminá-los da mais livre subjectividade estética. Versões de versões, testemunhos de quem ouviu a quem também já só tinha sido dado ouvir em segunda e terceira mãos, melodias, ritmos e harmonias associadas a actividades rurais há muito desaparecidas, fantasmas de um mundo longínquo que só a custo se deixa exumar, nesta espécie de honestíssimo manifesto contra a autenticidade (e parcela do projecto “A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria”), o que conta é “a alfabetização da memória” e o objectivo de “celebrar a tradição do futuro”. Jardineiras ou fato completo são opcionais.

6 comments:

alexandra g. said...

Porra, logo agora que estava para lhe pedir o divórcio, camerado.
Não se faz (repeat 3 times)!

Anonymous said...

Quando é que volta a escrever críticas de álbuns no Expresso?

João Lisboa said...

Não deixei de o fazer.

Anonymous said...

Para lá da coluna da direita? Já não escreve daquelas críticas que se restringiam a um álbum acabado de lançar pois não?

Anonymous said...

Na minha opinião o formato anterior era o mais adequado. Ou então surgirem ambos, mas o primeiro a prevalecer.

João Lisboa said...

Posso escrever o que quiser e como quiser. Na "coluna da direita" (ou "da esquerda").

Outras hipóteses serão excepcionais.