13 November 2012

UM TECLADO CASIO NUM TÚNEL DO METRO



Andrew Bird, consumado "jongleur" do idioma pop, tal como seria de esperar de um licenciado em violino (sem equivalências) pela Northwestern University do Illinois, é uma criatura amante do conhecimento das regras e, porque as domina, da sua transgressão. Não tem feito outra coisa desde que, a solo, publicou Weather Systems (2003) e, posteriormente, prosseguiu a expedição em busca de uma admirável pop complexa mas eminentemente legível em The Mysterious Production Of Eggs (2005), Armchair Apocrypha (2007), Noble Beast (2009) e Break It Yourself (2012). Ele explica como e porquê. 
  
O que é preciso acontecer no percurso de um violinista com formação académica para que ele se transforme em "songwriter" pop? 
Eu era um estudante muito aplicado mas não era nada institucional na minha forma de pensar. Acabei por descobrir que a pop era um desafio muito maior e mais inclusivo. Sob essa designação podemos fazer praticamente tudo o que quisermos: podemos ser complexos, crus, tocar notas erradas, se nos apetecer... já o jazz também me pareceu ter-se tornado demasiado institucionalizado. Gosto de jazz e também já o toquei mas não me agrada que me digam como devo tocar. 
  
Era já o que sentia na universidade? 
Já pensava assim na universidade mas, embora ali não existisse um ambiente muito estimulante, optei por aprender a dominar o violino. Tudo era apresentado de um modo demasiado importante e inibidor, mesmo que se tratasse de coisas que eu sentia que não seria nada do outro mundo conseguir realizá-las. Mas acabou por ser um conflito saudável. Ter uma estrutura contra a qual me revoltar reforçou de um modo especialmente apaixonado o meu desejo de fazer algo pessoal.


Parece-lhe que existe uma atitude comum entre músicos como o Andrew e St Vincent, Sufjan Stevens, Regina Spektor e Shara Worden, que têm trajectórias idênticas, da academia para os palcos pop?
Sim, todos tivemos experiências diferentes mas isso, provavelmente, terá a ver com esse conflito saudável de que lhe estava a falar: conhecer as regras e, depois, quebra-las com o entusiasmo que daí resulta. Comecei a sentir que, com a música clássica, se tratava sempre mais de uma exibição do que de uma actividade realmente criativa: quando interpretava um concerto, estava apenas a demonstrar a minha proficiência técnica, não me parecia que houvesse ali nenhuma demanda artística verdadeira. Mesmo que, em alguns casos, nos fosse permitido improvisar, sentia-me como que sufocado: tinha sempre que tocar as cadências que outros haviam composto. Mas, no que diz respeito à afinidade com todos esses outros músicos, suponho que todos nós temos consciência de que a nossa educação clássica não tem o menor valor no âmbito pop. 

A sério? 
Sim, sim. Por exemplo, numa situação em que possamos actuar com outra banda cujos músicos não tenham o menor treino académico e que sejam capazes de ter tanto ou mais sucesso do que nós em estabelecer contacto com o público. É esse o nivelamento que a pop estabelece. Gosto do desafio de conseguir fazer chegar a música que crio ao público sem que seja necessário que alguém lhes vá explicar o que, supostamente, é bom ou mau. Claro que não posso impedir que aquilo que estudei e aprendi transpareça. Mas não sinto que tenha alguma dívida de gratidão para com isso. É apenas um dado adquirido que ponho em uso. 

Suspeita que alguns compositores clássicos, se fossem hoje vivos, poderiam ter seguido trajectórias idênticas? 
Por volta dos meus dezanove, vinte anos, gostava muito de Ravel e, certamente, conseguimos ouvir alguma influência da música dele, por exemplo, nos Radiohead. A progressão do Bolero, é como um rebuçado que, a cada instante, promete exactamente aquilo que desejamos ouvir a seguir e cumpre a promessa, é pop por todos os lados. E, depois, a construção é muito polirrítmica, ao contrário de bastante música clássica que, na minha opinião, é ritmicamente estagnada. O desafio da música pop tem muito mais a ver com contenção: sermos capazes de dizer o máximo com o mínimo de meios. Já cheguei a impor-me o desafio de escrever uma canção apenas com dois acordes e uma melodia só com duas notas. E, mesmo com essas restrições, ela teria de ser atraente. Um pouco como se se tratasse de um tipo com um teclado Casio num túnel do Metro que conseguisse fazer-nos chorar. É o que importa. 
  
No documentário Fever Year, confessa que o pior público que existe é o microfone de um estúdio... 
Já senti mais isso no passado. Por vezes, sinto o peso das expectativas e das inúmeras possibilidades de que disponho. É por isso que me imponho restrições acerca do que posso e não posso fazer. Se não conseguir reproduzi-lo em palco, não vale a pena grava-lo em estúdio. 

É essa a sua regra?  
Já foi, depois quebrei-a e, agora, voltei a ela (risos).

Da universidade, passando pelos Squirrel Nut Zippers, até agora, foi um percurso planeado e consciente? 
Suponho que se tratou mais de ir atrás do instinto e da curiosidade e de me deixar ir tropeçando nos acontecimentos. Já fui mais e menos dogmático e religioso acerca de determinados aspectos, há coisas que umas vezes funcionam bem e, depois, já não resultam... como as restrições de que lhe falava. São necessárias até para, quando isso for importante, ir contra elas. Fui muito dogmático, por exemplo, relativamente ao purismo com que deveria abordar o "swing" dos anos 30 e, mais tarde, no que diz respeito a excluir qualquer ornamentação que infringisse a tal regra dos dois acordes ou que evocasse quaisquer referências exteriores. Actualmente, sinto que já provei tudo o que pretendia provar e que posso fazer como me apetecer. 

A sua música, parecendo extremamente pensada, dá, ao mesmo tempo, a ideia de ser resultado de um grande divertimento. Concorda? 
Claro, nem poderia ser de outra maneira. Creio que sempre me vi como músico profissional que teria de ganhar a vida através da música, por muito pouco que fosse o benefício. O que significa que tive de viver uns bons anos em circunstâncias longe das ideais. Por isso, prometi a mim mesmo que nunca haveria de me aborrecer por causa daquilo que faço e que adoro.

Qual foi a importância de, desde Armchair Apocrypha, ter começado a trabalhar com Martin Dosh?  
Ele não é, evidentemente, apenas um baterista. Compreende-me melhor do que qualquer outra pessoa porque partilhamos o mesmo impulso de seguir o nosso rumo individual e confiar nas próprias forças, sem esquecer que a música é também uma actividade social. Encontrei-o no final da minha fase a solo e ele era a única pessoa que eu tinha a certeza de que não iria descaracterizar a minha música. Concebemos algumas formas engenhosas de fazer a música circular electronicamente entre nós: envio-lhe um "loop" que ele transforma num "loop" seu e processa para a percussão... é algo que já se converteu numa segunda natureza para nós, criámos uma linguagem só nossa. 
  
Disse, numa entrevista que “as palavras têm o poder de nos iludir, estão carregadas de subtexto; as melodias são honestas, só podem ser aquilo que são”. E, no entanto, os textos das suas canções estão repletos de palavras invulgares, jogos e associações de palavras bizarros... 
As melodias aparecem-me, todos dias, sem grande esforço. Vão e vêm, capturo-as e alojo-as nas canções. Com as palavras, é mais difícil começar: cada uma tem de ser especificamente para uma determinada melodia. Mas, uma vez iniciado o processo, o mais difícil é parar. O meu problema com as palavras é que desejava ser reconhecido como um "songwriter" realmente bom. Mas tenho medo que isso possa ser visto como uma coisa excessivamente importante e bloqueie o lado lúdico.


Receia ser visto como uma personagem séria e respeitável? 
(risos) Sim, às vezes. Mas sei que, no que diz respeito às palavras, não ganho nada em levá-las demasiado a sério. O que não impede que as coisas e as ideias mais importantes que me preocupam acabem por aparecer nas canções. 
  
É por isso que recorre tanto ao assobio, para aligeirar essa seriedade? 
Não, assobiar é apenas muito eficaz. E muito portátil. Na maioria das vezes, é a melhor forma de desenhar uma melodia. E as minhas mãos estão sempre demasiado ocupadas com outras coisas. Para mim, até já seria bizarro não assobiar em palco.

8 comments:

alexandra g. said...

estive ali num conflito interno do caneco a tentar decidir se gosto mais deste texto ou daquele sobre as Pussy Riot e não cheguei a lado nenhum; pareceu-me, por via das dúvidas, que aprecio ambos de igual modo, o que se revelou, além de muito pacificador, uma alegria enorme.

que fixe, I say :)

João Lisboa said...

Este é uma entrevista, o da Rebelião do Pipi é um ensaio de grande fôlego.

:-)

alexandra g. said...

Eu sei :)
___
Tenho uma pergunta, que já estive para lhe colocar ontem, relacionada com estas crises nos jornais e no jornalismo. Imaginando que deixava, por alguma razão, de poder escrever no Actual (e desconheço se escreve em qualquer outro jornal, suplemento de jornal, revista, etc.), teria escrito aquele artigo de fundo sobre as Pussy Riot com a intensidade (na perspectiva de quem lê, mas isso também só se percebe quando é escrito de igual modo, creio eu) com que o escreveu para o Actual? E escreveria outros, também de grande fôlego, sem repercussão ou pagamento para além do prazer pessoal e das eventuais demonstrações de gratidão dos leitores?

João Lisboa said...

"outros, também de grande fôlego"

:-)

Mesmo levando em conta que a preguiça é uma das minhas maiores qualidades, suponho que sim. Mas a pressão dos horários e das deadlines é estimulante.

alexandra g. said...

Lisboa rules :)

João Lisboa said...

http://www.google.pt/imgres?um=1&hl=en&sa=N&biw=1280&bih=630&tbm=isch&tbnid=e-HEqEOQh6B6eM:&imgrefurl=http://www.factorlisboa.com/online/%3Fp%3D7115&docid=t7-DCpug4-xN-M&imgurl=http://www.factorlisboa.com/online/wp-content/uploads/2012/05/Super-Lisboa.jpg&w=213&h=204&ei=HQ6lUNaoDpCWhQfN8YCoCQ&zoom=1&iact=hc&vpx=415&vpy=229&dur=81&hovh=163&hovw=170&tx=122&ty=64&sig=104443602723735228251&page=2&tbnh=144&tbnw=150&start=19&ndsp=24&ved=1t:429,r:38,s:0,i:187

alexandra g. said...

a melhor forma de conhecer uma rua é a outra rua; isto aplica-se às cidades, aos países, talvez aos desertos também.

usava este método quando ainda trabalhava como guia-intérprete; os resultados eram encantadores :)

João Lisboa said...

Eu perco-me em ruas. Mesmo naquelas que (aparentemente) deveria conhecer bem. Gosto muito de ruas.