07 September 2012

UM ESPAÇO PEQUENO COM GENTE ENORME


É uma vergonha. Mas foi preciso que, meia dúzia de dias após termos conversado telefonicamente, Van Dyke Parks me tivesse enviado um email a pedir imensa desculpa por se ter esquecido de me dizer quanto o tinha impressionado, em 1957, uma estátua de Vasco da Gama que vira em Lisboa, para que eu me apercebesse de que, sim, existe, em Lisboa, uma estátua dele. No Arco da Rua Augusta. À beira dos 70 anos, o homem que, com Brian Wilson, inventou o lendário Smile e vê, agora, o seu magnífico tríptico inicial reeditado (Song Cycle, 1967, Discover America, 1972, Clang Of The Yankee Reaper, 1975) sabe isso e muitíssimo mais e é o exacto tipo de interlocutor com quem apetece conversar pelas horas fora.

    Deve ser uma sensação bastante peculiar ver, ao fim de mais de quatro décadas, as suas primeiras gravações de novo publicadas...

    A primeira impressão é que, de súbito, me fez sentir muito velho. Agora, tenho cabelos brancos e estamos a falar de obras do tempo em que eles eram castanhos. Aos meus filhos, digo: há neve no telhado mas, cá dentro, o fogo continua a arder. Continuei sempre a trabalhar e acredito que o melhor ainda está para vir. Voltando ao que ficou para trás, tenho de dizer que ainda me espanta, parece-me bem executado e surpreende-me que esteja a ser reeditado porque sempre tenho vivido nos bastidores e retirado imenso prazer de trabalhar para outros músicos como arranjador. Mas tenho muito orgulho nos poucos discos que publiquei em nome próprio, na sensação de descoberta que neles existe, e vejo-os não como peças de museu mas como sinais claros de uma "street sensibility" e de um sentido de humanidade que não desapareceram.


    Diria que aquilo que pretendeu concretizar com Song Cycle estava no mesmo comprimento de onda do que, em Smile, com Brian Wilson e os Beach Boys, pouco antes, tinha experimentado?

    Não posso dizer que, conscientemente, tivesse pensado em alguma comparação ou continuidade: ambos exprimiam aquilo que eu era e os assuntos por que me interessava e qualquer semelhança – ou mesmo dissemelhança – seria totalmente acidental.

    Não estava a pensar em semelhanças mas na possibilidade de existir alguma atmosfera criativa da época partilhada por ambos os projectos...

    Não sei responder a isso. De um modo geral, o meu trabalho é completamente instintivo, nada racionalizado. Estilisticamente, surgiu com uma certa espontaneidade, nunca tive, sequer, tempo para pensar nisso.

    Deixe-me, então, reformular a pergunta: andarei demasiado longe da verdade se disser que o espírito que liga todos estes trabalhos é o que dá o título a um dos seus álbuns, Discover America?

    Acho que sim. Desde miúdo, ensinaram-me que a primeira regra da escrita é escrevermos sobre aquilo que conhecemos. Eu escrevia sobre aquilo que me era familiar. Em particular, sobre a experiência americana. É preciso recordar que, na época em que Song Cycle foi publicado, os Beatles eram a “Invencível Armada”, a força dominante na música. Todos desejavam ser musicalmente ingleses e não era popular ser americano. Na América, aconteciam motins raciais, lançavam-se bombas sobre o Vietname, ser americano era algo de indesejável, déclassé... e, no entanto, eu pretendia ir pela estrada menos utilizada, queria descobrir a América.



    Por outro lado, qual foi a sua sensação quando, tanto tempo depois, Brian Wilson publicou, finalmente Smile?

    Fiquei muito feliz porque a minha relação era, essencialmente, com ele, era um projecto altamente pessoal e foi maravilhoso podermos revisitá-lo e conclui-lo dado que havia ainda tecido conjuntivo no corpo da obra que necessitava de ser construído. Foram apenas necessários alguns dias, foi como voltar a andar de bicicleta depois de muitos anos sem o fazer. Mas isso é só aquilo que tem sido a realidade da minha vida, o prazer de fazer música, escrever textos, colaborar com outros, a verdadeira felicidade está aí. Sempre me senti muito distante tanto de cumprimentos como de insultos no que respeita à opinião que possam ter sobre o meu trabalho.

    Tanto é compositor como produtor, arranjador e letrista, já escreveu para o cinema e colaborou com gente tão diferente como Tim Buckley, Randy Newman, Laurie Anderson, Harry Nilsson, Fiona Aple, Phil Ochs... como faz para se exprimir através de veículos tão diferentes e com gente tão diversa?

    Pode dizer-se que é uma arena social bastante elástica. É preciso lidar com uma dinâmica muito ampla mas a regra de ouro, para mim, tem sido sempre procurar rodear-me dos maiores talentos que for capaz e tentar servi-los lealmente, procurando tirar partido do melhor que têm. E, ao fazê-lo, talvez consiga contribuir com algo e construir um corpo de trabalho significativo. É um desafio muito exigente, claro, trabalhar com outros e respeitá-los, quer esteja de acordo com eles ou não. Tanto como produtor, como enquanto compositor ou arranjador, acho que descobri formas para o fazer bem. Mas nunca me sinto preparado para isso, não é como se tivesse descoberto a fórmula mágica. É preciso ter confiança nesse processo.


    Falando de três daqueles que já não estão connosco – Tim Buckley, Harry Nilsson e Phil Ochs – como foi trabalhar com eles?

    Tinham os três uma coisa absolutamente idêntica: todos decidiram o seu próprio caminho, todos viveram sem perder de vista os seus princípios, sabiam distinguir o certo do errado. Talvez não soubessem para onde se dirigiam mas agiam de acordo com o que pensavam ser correcto. O Phil Ochs foi o homem mais honesto e incorrupto que alguma vez conheci na música. O Harry Nilsson, entretanto, foi o mais inteligente, era um génio, um génio matemático, e, ao mesmo tempo, uma imprevisível bola de fogo capaz de incendiar qualquer lugar onde entrasse. O Tim, com uma personalidade mais fechada, tinha uma visão muito clara. Mas eram todos completamente verdadeiros em relação a si mesmos, o género de pessoas com quem eu gosto de estar numa sala. Porque gravar um álbum é isso: estar dentro de um espaço pequeno com gente enorme.

    Li que, na sua relação com outros músicos, procura adoptar uma atitude reactiva perante aquilo que eles lhe sugerem. Enquanto compositor, no entanto, como passa a uma posição activa?

    Sinto-me autorizado a estar errado, preciso de gozar do direito a falhar. Há uma autoridade no insucesso, tal como existe uma autoridade no êxito. Repare na autoridade de um falhanço, por exemplo, Vincent Van Gogh: ninguém representa a autoridade do insucesso como esse pintor holandês. Vendeu um único quadro durante toda a vida e, contudo, emergiu como um pintor de imenso valor porque sabia desinquietar as pessoas e interrogar a forma como viam o mundo. Não que eu me tenha proposto fazer o mesmo mas a minha música também mexeu com quem a ouviu, ao ponto de alguns se irritarem e de isso me criar problemas com a crítica. É muito reactiva em relação ao tempo e aos acontecimentos que me formaram e não me envergonho disso. Quando compus Song Cycle tinha 24 anos e consigo ver os erros que cometi. Claro que gostava de ter tido uma vida economicamente desafogada mas esse tipo de preocupações nunca me ocorre quando estou a pensar em música.


    Quando, há pouco, falou do seu americanismo por oposição à invasão britânica dos anos 60, recordei-me de uma entrevista em que afirmou não se ter impressionado muito com o folk-rock mas sim com o folk, que Martin Carthy era o seu músico britânico favorito e que votava mais nos Steeleye Span do que nos Fairport Convention. O que, tendo estes sido o casulo de dois dos maiores "songwriters" – Richard Thompson e Sandy Denny –, me surpreendeu...

    Sem dúvida. Tanto a Sandy como o Richard ou o Martin representam uma continuidade. Parte da obrigação de um artista consiste em revelar uma compreensão histórica e, simultaneamente, mergulhar no futuro: há que manter o pára-brisas maior que o espelho retrovisor mas devemos preservar ambos. Há tesouros que devem ser estimados e descobrir uma forma de os fazer iluminar esta idade das trevas em que vivemos e que se chama Antropoceno: no meu tempo de vida, começou com o lançamento da primeira bomba atómica e é uma era mais negra da História humana do que, alguma vez, poderia ter imaginado, um momento em que a contribuição das artes tem de ser mais importante do que nunca. E eu quero fazer parte desse processo.

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