É uma vergonha. Mas foi preciso que, meia dúzia de dias após termos conversado telefonicamente, Van Dyke Parks me tivesse enviado um email a pedir imensa desculpa por se ter esquecido de me dizer quanto o tinha impressionado, em 1957, uma estátua de Vasco da Gama que vira em Lisboa, para que eu me apercebesse de que, sim, existe, em Lisboa, uma estátua dele. No Arco da Rua Augusta. À beira dos 70 anos, o homem que, com Brian Wilson, inventou o lendário Smile e vê, agora, o seu magnífico tríptico inicial reeditado (Song Cycle, 1967, Discover America, 1972, Clang Of The Yankee Reaper, 1975) sabe isso e muitíssimo mais e é o exacto tipo de interlocutor com quem apetece conversar pelas horas fora.
Deve
ser uma sensação bastante peculiar ver, ao fim de mais de quatro décadas, as
suas primeiras gravações de novo publicadas...
A primeira impressão é que, de súbito, me
fez sentir muito velho. Agora, tenho cabelos brancos e estamos a falar de obras
do tempo em que eles eram castanhos. Aos meus filhos, digo: há neve no telhado
mas, cá dentro, o fogo continua a arder. Continuei sempre a trabalhar e
acredito que o melhor ainda está para vir. Voltando ao que ficou para trás,
tenho de dizer que ainda me espanta, parece-me bem executado e surpreende-me
que esteja a ser reeditado porque sempre tenho vivido nos bastidores e retirado
imenso prazer de trabalhar para outros músicos como arranjador. Mas tenho muito
orgulho nos poucos discos que publiquei em nome próprio, na sensação de
descoberta que neles existe, e vejo-os não como peças de museu mas como sinais
claros de uma "street sensibility" e de
um sentido de humanidade que não desapareceram.
Diria
que aquilo que pretendeu concretizar com Song Cycle estava no mesmo
comprimento de onda do que, em Smile, com Brian Wilson e os Beach Boys, pouco
antes, tinha experimentado?
Não posso dizer que, conscientemente,
tivesse pensado em alguma comparação ou continuidade: ambos exprimiam aquilo
que eu era e os assuntos por que me interessava e qualquer semelhança – ou
mesmo dissemelhança – seria totalmente acidental.
Não
estava a pensar em semelhanças mas na possibilidade de existir alguma atmosfera
criativa da época partilhada por ambos os projectos...
Não sei responder a isso. De um modo geral,
o meu trabalho é completamente instintivo, nada racionalizado. Estilisticamente,
surgiu com uma certa espontaneidade, nunca tive, sequer, tempo para pensar
nisso.
Deixe-me,
então, reformular a pergunta: andarei demasiado longe da verdade se disser que
o espírito que liga todos estes trabalhos é o que dá o título a um dos seus
álbuns, Discover America?
Acho que sim. Desde miúdo, ensinaram-me que
a primeira regra da escrita é escrevermos sobre aquilo que conhecemos. Eu
escrevia sobre aquilo que me era familiar. Em particular, sobre a experiência
americana. É preciso recordar que, na época em que Song Cycle foi publicado,
os Beatles eram a “Invencível Armada”, a força dominante na música. Todos
desejavam ser musicalmente ingleses e não era popular ser americano. Na
América, aconteciam motins raciais, lançavam-se bombas sobre o Vietname, ser
americano era algo de indesejável, déclassé...
e, no entanto, eu pretendia ir pela estrada menos utilizada, queria descobrir a
América.
Por
outro lado, qual foi a sua sensação quando, tanto tempo depois, Brian Wilson
publicou, finalmente Smile?
Fiquei muito feliz porque a minha relação
era, essencialmente, com ele, era um projecto altamente pessoal e foi maravilhoso
podermos revisitá-lo e conclui-lo dado que havia ainda tecido conjuntivo no
corpo da obra que necessitava de ser construído. Foram apenas necessários
alguns dias, foi como voltar a andar de bicicleta depois de muitos anos sem o
fazer. Mas isso é só aquilo que tem sido a realidade da minha vida, o prazer de
fazer música, escrever textos, colaborar com outros, a verdadeira felicidade
está aí. Sempre me senti muito distante tanto de cumprimentos como de insultos
no que respeita à opinião que possam ter sobre o meu trabalho.
Tanto
é compositor como produtor, arranjador e letrista, já escreveu para o cinema e
colaborou com gente tão diferente como Tim Buckley, Randy Newman, Laurie
Anderson, Harry Nilsson, Fiona Aple, Phil Ochs... como faz para se exprimir
através de veículos tão diferentes e com gente tão diversa?
Pode dizer-se que é uma arena social
bastante elástica. É preciso lidar com uma dinâmica muito ampla mas a regra de
ouro, para mim, tem sido sempre procurar rodear-me dos maiores talentos que for
capaz e tentar servi-los lealmente, procurando tirar partido do melhor que têm.
E, ao fazê-lo, talvez consiga contribuir com algo e construir um corpo de
trabalho significativo. É um desafio muito exigente, claro, trabalhar com
outros e respeitá-los, quer esteja de acordo com eles ou não. Tanto como
produtor, como enquanto compositor ou arranjador, acho que descobri formas para
o fazer bem. Mas nunca me sinto preparado para isso, não é como se tivesse
descoberto a fórmula mágica. É preciso ter confiança nesse processo.
Falando
de três daqueles que já não estão connosco – Tim Buckley, Harry Nilsson e Phil
Ochs – como foi trabalhar com eles?
Tinham os três uma coisa absolutamente
idêntica: todos decidiram o seu próprio caminho, todos viveram sem perder de
vista os seus princípios, sabiam distinguir o certo do errado. Talvez não
soubessem para onde se dirigiam mas agiam de acordo com o que pensavam ser
correcto. O Phil Ochs foi o homem mais honesto e incorrupto que alguma vez
conheci na música. O Harry Nilsson, entretanto, foi o mais inteligente, era um
génio, um génio matemático, e, ao mesmo tempo, uma imprevisível bola de fogo
capaz de incendiar qualquer lugar onde entrasse. O Tim, com uma personalidade
mais fechada, tinha uma visão muito clara. Mas eram todos completamente
verdadeiros em relação a si mesmos, o género de pessoas com quem eu gosto de
estar numa sala. Porque gravar um álbum é isso: estar dentro de um espaço
pequeno com gente enorme.
Li
que, na sua relação com outros músicos, procura adoptar uma atitude reactiva
perante aquilo que eles lhe sugerem. Enquanto compositor, no entanto, como
passa a uma posição activa?
Sinto-me autorizado a estar errado, preciso
de gozar do direito a falhar. Há uma autoridade no insucesso, tal como existe
uma autoridade no êxito. Repare na autoridade de um falhanço, por exemplo,
Vincent Van Gogh: ninguém representa a autoridade do insucesso como esse pintor
holandês. Vendeu um único quadro durante toda a vida e, contudo, emergiu como
um pintor de imenso valor porque sabia desinquietar as pessoas e interrogar a
forma como viam o mundo. Não que eu me tenha proposto fazer o mesmo mas a minha
música também mexeu com quem a ouviu, ao ponto de alguns se irritarem e de isso
me criar problemas com a crítica. É muito reactiva em relação ao tempo e aos
acontecimentos que me formaram e não me envergonho disso. Quando compus Song
Cycle tinha 24 anos e consigo ver os erros que cometi. Claro que gostava de
ter tido uma vida economicamente desafogada mas esse tipo de preocupações nunca
me ocorre quando estou a pensar em música.
Quando,
há pouco, falou do seu americanismo por oposição à invasão britânica dos anos
60, recordei-me de uma entrevista em que afirmou não se ter impressionado muito
com o folk-rock mas sim com o folk, que Martin Carthy era o seu músico
britânico favorito e que votava mais nos Steeleye Span do que nos Fairport
Convention. O que, tendo estes sido o casulo de dois dos maiores "songwriters" – Richard Thompson e Sandy
Denny –, me surpreendeu...
Sem dúvida. Tanto a Sandy como o Richard ou
o Martin representam uma continuidade. Parte da obrigação de um artista
consiste em revelar uma compreensão histórica e, simultaneamente, mergulhar no
futuro: há que manter o pára-brisas maior que o espelho retrovisor mas devemos preservar
ambos. Há tesouros que devem ser estimados e descobrir uma forma de os fazer
iluminar esta idade das trevas em que vivemos e que se chama Antropoceno: no
meu tempo de vida, começou com o lançamento da primeira bomba atómica e é uma
era mais negra da História humana do que, alguma vez, poderia ter imaginado, um
momento em que a contribuição das artes tem de ser mais importante do que
nunca. E eu quero fazer parte desse processo.
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