01 August 2012

OKAPIS EM SELVA DE ANFIGURIS

















Gaiteiros de Lisboa - Avis Rara

O calendário, cartografia, fusos horários e cronologia são, evidentemente, pessoalíssimos, embora, surpreendentemente, transmissíveis. Por exemplo: “Fez sábado quinta-feira, pra lá de Évora três semanas, estive dez dias num Verão, nas Américas romanas”. Quer, com isto, dizer-se que, apesar de, a propósito dos Gaiteiros de Lisboa, continuar a ser inevitável ouvir-se falar de músicas tradicionais (portuguesa ou do resto do mapa), a verdade é que, mesmo que todas as coordenadas possam apontar para lugares identificáveis, eles habitam, desde há muito, um universo inteiramente privado, uma espécie de reserva de okapis sonoros em selva de anfiguris. Onde, não sendo impossível que os apanhemos a tocar instrumentos convencionais como gaitas-de-foles (há que fazer jus ao nome), bombos, timbalões ou trompas, o mais provável será darmos com eles â volta de caixofones, cadeiretas, canarions, cabeçadecompressorofones, sanfonocellos, serpentalhos e túbaros de Orfeu, espécimes concebidos por aquela região do cérebro de certos "luthiers" permanentemente sintonizada nas emissões de rádio do asteróide de onde alienígenas como Tom Waits são originários.



De resto, a “avis rara” propriamente dita, tal como, na ilustração da capa, Carlos Guerreiro a retrata – pêga mecânica/boneco de pau articulado, entre bicicleta, helicóptero e aspirador, resultado da cópula de uma bola de futebol rebentada com a descendência de Heckle (ou Jeckle) a bordo da passarola de Bartolomeu de Gusmão –, é assaz esclarecedora: aqui, muito pouco ou nada funciona de acordo com as normas com que, habitualmente, a música é lançada à pauta. A qual, só por acaso ou acidente, será constituída pelas proverbiais cinco linhas paralelas, estorvo intolerável para os caminhos deliciosamente tortuosos por que os Gaiteiros preferem deambular. 



Procurando, ingloriamente, traduzir: as polifonias vocais poderão dar-se ares de cante alentejano mas não é impossível que, afinal, tenham sido extraídas das terras altas das Beiras, de Trás os Montes ou da Polinésia; a sátira política, carimbada por Sérgio Godinho ("Avejão"), prefere travestir-se de tratado de ornitologia (atentem na milagrosa actualidade de “No reino das trepadoras, o papagaio é senhor, mesmo até sem saber ler, qualquer papagaio é doutor”) emoldurado por filarmónica cubista; uma (literalmente) esdrúxula gincana linguística em mar bravio de gaitas à solta ("Proparaxitonias") desagua, de bom grado, em bailarico latino-americano com súplica de “Quiero tier fuerça na vierga”; mortos e vivos (Alexandre O’Neil, Ana Bacalhau, Adiafa, Zeca Medeiros, Godinho), sem que sequer se possa imaginar que, alguma vez, possa ter sido diferente, convertem-se, imediatamente, em irmãos activos da herética Ordem Gaiteira; e, como se fosse necessária comprovação de que tão libérrimo desvario assenta sobre o terreno sólido de quem, de há muito, trata por tu – e, se lhe apetecer, insulta – os mil e um idiomas de ainda mais origens e eras, em "Conde Ninho", as vozes de José Manuel David e Rui Vaz, em equilíbrio sobre o arame de um cavo bordão de gaitas, digladiam-se num virtuoso duelo vocal de vetusta linhagem serrana, coisa de imobilizar instantaneamente o tempo e nos pôr a gaguejar os grãos de areia e as eternidades de William Blake num qualquer dialecto transfronteriço. Foram precisos seis anos para achar o sucessor de Sátiro mas o quinto painel da odisseia de estúdio dos Gaiteiros é daquelas oferendas que vale cada segundo de espera.

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