29 August 2012

PUSSY RIOT: A META-OBRA DE ARTE


Numa extensa entrevista (“Myths And Depths”) realizada no início deste ano por Simon Reynolds e publicada a 11 de Maio, na “Los Angeles Review Of Books”, Greil Marcus, a certa altura, quando interrogado acerca da suposta “ironia pós-moderna” que alimentaria o ADN do punk novaiorquino, explodiu: Fuck postmodernism! Give me modernism”. E, no mesmo fôlego, prosseguiu a tirada: “O modernismo afirma que o mundo deve ser transformado e nos cabe fazer o desenho de como ele deverá ser. E aí temos Malevich, o cubismo, Magritte... o mundo é, realmente, assim e o que faremos agora? Isto era o que podíamos ouvir nos Sex Pistols e em tantos outros grupos, fossem eles os X-Ray Spex, a Lora Logic, os Gang Of Four ou as Raincoats. Ou os Clash, em ‘Complete Control’. Compreendi imediatamente: isto era algo completamente diferente. Era uma crítica da vida e as exigências desta música eram absolutas. Nunca coisa alguma a iria satisfazer. Aconteceu ser a música o meio. E era um meio melhor. A vanguarda do século XX tinha, finalmente, encontrado a sua verdadeira voz. Escrevi que o punk produziu melhor arte que todos os movimentos de vanguarda que o antecederam. E falava a sério. Não era uma declaração provocatória. Eram obras de arte singulares e chegavam-nos em torrente. Por um breve momento, qualquer um podia tropeçar numa afirmação de verdade e assumi-la. Não interessava quem eram nem de onde vinham”.



“Aconteceu ser a música o meio” é, justamente, o que deverá dizer-se acerca de Nadezhda Tolokonnikova, Yekaterina Samutsevich e Maria Alekhina (que, até há muito pouco, ninguém sabia quem eram nem de onde vinham), três dos muito variáveis membros da entidade informal a que, apenas por preguiça, se continua a chamar “a banda punk, Pussy Riot”. Condenadas por um tribunal de Moscovo, no final da semana passada, a uma pena de dois anos de prisão “por hooliganismo e incitação ao ódio religioso”, devido a, no altar da Catedral do Cristo Salvador, em 21 de Fevereiro, terem, entoado uma “oração punk” em que imploravam à Virgem que livrasse os russos de Vladimir Putin, apesar da importante movimentação internacional em torno da sua libertação – 121 deputados alemães exigiram-na em carta dirigida ao embaixador russo, Vladimir Grinin; Alistair Burt, ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, declarou que o veredicto “põe em causa o compromisso da Rússia quanto à protecção das liberdades e direitos fundamentais”; Merkel, a Casa Branca e a União Europeia também emitiram ruídos; e um coro de protestos de notabilidades da música, do cinema e de múltiplas organizações de defesa dos direitos humanos tem vindo a ampliar-se –, não tem sido fácil descobrir quem faça o pequeno esforço de tentar enxergar para lá do estereótipo das "três miúdas  irreverentes, que impensadamente e sem medir as consequências, brincaram com o fogo da proto-ditadura russa e saíram queimadas”.


Não tem sido fácil mas não é impossível. Pouco tempo após ter sido lido o interminável veredicto (duas horas e meia, ainda disponíveis no YouTube), Michael Idov, editor da “GQ Rússia”, no “Guardian” colocava o dedo na ferida: “As Pussy Riot demonstraram ser as únicas profissionais presentes: desde o nome, perfeitamente concebido para, simultaneamente, chocar e atrair os media ocidentais, à imagem instantaneamente reconhecível; da mensagem (jactos concisos de agitprop feminista com o q.b. de melodia para passarem por canções), ao método de distribuição através das redes sociais; da pose punk inicial em entrevistas, às declarações rigorosamente académicas no tribunal (...); estas mulheres e apenas elas, no meio desta confusão, sabem exactamente o que estão a fazer. Minutos após o veredicto, divulgaram um novo single, ‘Putin Lights Up The Fires’, em exclusivo, no ‘Guardian’. (...) De facto, tão grande destreza na relação com o público poderá mesmo abrir uma melindrosa discussão acerca de saber se a prisão não será parte integrante da meta-obra de arte que é a história das Pussy Riot”.
   

A 8 de Agosto, nas alegações finais perante o tribunal – num texto que David Remnick, editor da “New Yorker”, classificou como “um clássico instantâneo para uma antologia da dissidência” –, Nadezhda Tolokonnikova, adoptando a consagrada estratégia de converter o acusado em acusador, começara por afirmar: “Na essência, não são as três cantoras das Pussy Riot que estão aqui a ser julgadas. Se fosse esse o caso, o que está a acontecer seria completamente insignificante. É o aparelho de Estado da Federação Russa no seu todo que está a ser julgado e que, infelizmente para si mesmo, se deleita verdadeiramente em publicitar a sua crueldade para com os seres humanos, a indiferença perante a sua honra e dignidade, o pior do que aconteceu na História da Rússia até hoje. Lamento profundamente que este tribunal não seja muito diferente das troikas estalinistas. (...) As decisões que toma são determinadas por uma exigência política de repressão. De quem é a culpa pela nossa performance na Catedral do Cristo Salvador e por termos sido processadas a seguir? Do sistema político autoritário. 


O que as Pussy Riot fizeram foi arte e política de oposição que deriva de formas artísticas estabelecidas. Trata-se de uma forma de intervenção cívica em circunstâncias nas quais os direitos humanos básicos e as liberdades políticas foram suprimidas pelo Estado. (...) Realizámos os nossos concertos punk porque o Estado russo é rígido, fechado e dominado por castas cuja política está de tal modo ao serviço de interesses corporativos que só de respirar o ar da Rússia nos dá náuseas”. E, depois de citar Aleksander Vvedensky (e os outros futuristas russos dos anos 20 e 30 dizimados pelo estalinismo), Dostoyevsky, Sócrates e Montaigne, concluiu, evocando a própria ‘Punk Prayer’: “Por estranho que pareça, todas as nossas canções acabaram por se revelar proféticas, incluindo a que diz ‘O chefe do KGB, o santo número um, escoltará até à cadeia os indignados que protestam’. Era de nós que falávamos! Mas o que importa, agora, é a frase seguinte: ‘Abram as portas, corram com as insígnias militares e juntem-se a nós para saborear a liberdade’”.

A verdade é que as Pussy Riot não são aquilo que nos habituámos a designar como “uma banda”: integrando cerca de 10 performers e 15 elementos responsáveis pela logística técnica (incluindo filmagem, montagem e distribuição de vídeos via-Internet), são elas próprias uma espécie de “braço armado punk” do colectivo radical de "street-artists", Voïna (“Guerra”), a quem, em Agosto do ano passado, o "graffiter" britânico, Banksy, dedicou um episódio do programa “The Antics Road Show”, no Channel 4: “A Rússia. Terra de arquitectura grandiosa, excelente literatura e corrupção policial endémica”, narrava a voz-off enquanto as imagens mostravam as “performances artísticas extremas” dos últimos cinco anos destinadas a provar que “a polícia não é imbatível” e que incluíram a pichagem nocturna de um falo gigante numa ponte levadiça de São Petersburgo que, quando erguida, apontava para o edifício-sede do FSB (ex-KGB) ou a "Fuck for the heir Puppy Bear!", “fuck action” pública de grupo, levada a cabo, em Fevereiro de 2008, no Museu de Biologia de Moscovo – na sala “Metabolismo e energia dos organismos” – em protesto contra a passagem de testemunho de Putin a Medvedev (“medvedev”, em russo, significa “urso”), nas muito contestadas eleições desse ano.


Por isso, se existe alguma verdade no que, a 3 de Agosto, em “Making Punk A Threat Again”, Spencer Ackerman escrevia no “Foreign Policy” – “As Pussy Riot são - e tomando de empréstimo, por um segundo, o lema dos Clash - a única banda que realmente interessa” – vendo nelas o derradeiro elo de vencedoras, pelo martírio, numa longa linhagem de heróis punk parcos de vitórias reais, será mais exacto encará-las como brigada de teatro de guerrilha urbana mais afim das tácticas Situacionistas do que do, ainda assim, convencional, modus operandi punk: não existem discos físicos das Pussy Riot que possam ser comprados ou descarregados da net. O que há são momentos – sobre um andaime erguido nos corredores do metro de Moscovo, na rua, em equilíbrio sobre o tejadilho de um autocarro, na Praça Vermelha –, primária e entusiasticamente coreografados, gritados num idioma incompreensível para todos os não-russos por um número variável de personagens femininas coloridas de rosto oculto, registados e lançados para o mundo-www, sem necessidade de intermediária "indie" ou "major". E capazes de, apesar de todos os obstáculos, fazer passar, instantaneamente, o recado. Ou de, no dia do julgamento, oferecer aos surpreendidos moscovitas a descoberta das estátuas da capital russa com as cabeças cobertas pelos icónicos passa-montanhas multicores. Porque se, afinal, o punk pode ser, de novo, ameaçador, é por aqui que deverá ser procurado e não – como, seguramente, Greil Marcus seria o primeiro a reconhecer – no "box-set deluxe" remasterizado (3CD + 1 DVD) de Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols, prontinho para sair daqui a um mês.

1 comment:

Rui Gonçalves said...

É um artigo de fundo, profundo, muito bom. :-)