PUSSY RIOT: A META-OBRA DE ARTE
Numa
extensa entrevista (“Myths And Depths”) realizada no início deste ano por Simon
Reynolds e publicada a 11 de Maio, na “Los Angeles Review Of Books”, Greil
Marcus, a certa altura, quando interrogado acerca da suposta “ironia
pós-moderna” que alimentaria o ADN do punk novaiorquino, explodiu: “Fuck postmodernism! Give me
modernism”. E, no mesmo fôlego, prosseguiu a tirada: “O modernismo afirma que o
mundo deve ser transformado e nos cabe fazer o desenho de como ele deverá ser.
E aí temos Malevich, o cubismo, Magritte... o mundo é, realmente, assim e o que
faremos agora? Isto era o que podíamos ouvir nos Sex Pistols e em tantos outros
grupos, fossem eles os X-Ray Spex, a Lora Logic, os Gang Of Four ou as
Raincoats. Ou os Clash, em ‘Complete Control’. Compreendi imediatamente: isto
era algo completamente diferente. Era uma crítica da vida e as exigências desta
música eram absolutas. Nunca coisa alguma a iria satisfazer. Aconteceu
ser a música o meio. E era um meio melhor. A vanguarda do século XX tinha, finalmente, encontrado a sua verdadeira
voz. Escrevi que o punk produziu melhor arte que todos os movimentos de
vanguarda que o antecederam. E falava a sério. Não era uma declaração
provocatória. Eram obras de arte
singulares e chegavam-nos em torrente. Por um breve momento, qualquer um podia
tropeçar numa afirmação de verdade e assumi-la. Não interessava quem eram nem
de onde vinham”.
“Aconteceu ser a música o meio” é, justamente, o que deverá dizer-se
acerca de Nadezhda Tolokonnikova, Yekaterina Samutsevich e Maria
Alekhina (que, até há muito pouco, ninguém sabia quem eram nem de onde vinham),
três dos muito variáveis membros da entidade informal a que, apenas por
preguiça, se continua a chamar “a banda punk, Pussy Riot”. Condenadas por um
tribunal de Moscovo, no final da semana passada, a uma pena de dois anos de
prisão “por hooliganismo e incitação ao ódio religioso”, devido a, no altar da
Catedral do Cristo Salvador, em 21 de Fevereiro, terem, entoado uma “oração
punk” em que imploravam à Virgem que livrasse os russos de Vladimir Putin,
apesar da importante movimentação internacional em torno da sua libertação –
121 deputados alemães exigiram-na em carta dirigida ao embaixador russo,
Vladimir Grinin; Alistair Burt, ministro britânico dos Negócios Estrangeiros,
declarou que o veredicto “põe em causa o compromisso da Rússia quanto à
protecção das liberdades e direitos fundamentais”; Merkel, a Casa Branca e a
União Europeia também emitiram ruídos; e um coro de protestos de notabilidades
da música, do cinema e de múltiplas organizações de defesa dos direitos humanos
tem vindo a ampliar-se –, não tem sido fácil descobrir quem faça o pequeno
esforço de tentar enxergar para lá do estereótipo das "três miúdas irreverentes, que impensadamente e sem medir as consequências, brincaram com o fogo da proto-ditadura russa e saíram queimadas”.
Não
tem sido fácil mas não é impossível. Pouco tempo após ter sido lido o
interminável veredicto (duas horas e meia, ainda disponíveis no YouTube),
Michael Idov, editor da “GQ Rússia”, no “Guardian” colocava o dedo na ferida:
“As Pussy Riot demonstraram ser as únicas profissionais presentes: desde o
nome, perfeitamente concebido para, simultaneamente, chocar e atrair os media
ocidentais, à imagem instantaneamente reconhecível; da mensagem (jactos
concisos de agitprop feminista com o q.b. de melodia para passarem por canções),
ao método de distribuição através das redes sociais; da pose punk inicial em
entrevistas, às declarações rigorosamente académicas no tribunal (...); estas
mulheres e apenas elas, no meio desta confusão, sabem exactamente o que estão a
fazer. Minutos após o veredicto, divulgaram um novo single, ‘Putin Lights Up
The Fires’, em exclusivo, no ‘Guardian’. (...) De facto, tão grande destreza na
relação com o público poderá mesmo abrir uma melindrosa discussão acerca de saber
se a prisão não será parte integrante da meta-obra de arte que é a história das
Pussy Riot”.
A 8 de Agosto, nas alegações finais perante
o tribunal – num texto que David Remnick, editor da “New Yorker”, classificou
como “um clássico instantâneo para uma antologia da dissidência” –, Nadezhda
Tolokonnikova, adoptando a consagrada estratégia de converter o acusado em
acusador, começara por afirmar: “Na essência, não são as três cantoras das
Pussy Riot que estão aqui a ser julgadas. Se fosse esse o caso, o que está a
acontecer seria completamente insignificante. É o aparelho de Estado da
Federação Russa no seu todo que está a ser julgado e que, infelizmente para si
mesmo, se deleita verdadeiramente em publicitar a sua crueldade para com os
seres humanos, a indiferença perante a sua honra e dignidade, o pior do que
aconteceu na História da Rússia até hoje. Lamento profundamente que este
tribunal não seja muito diferente das troikas estalinistas. (...) As decisões
que toma são determinadas por uma exigência política de repressão. De quem é a
culpa pela nossa performance na Catedral do Cristo Salvador e por termos sido
processadas a seguir? Do sistema político autoritário.
O que as Pussy Riot
fizeram foi arte e política de oposição que deriva de formas artísticas
estabelecidas. Trata-se de uma forma de intervenção cívica em circunstâncias
nas quais os direitos humanos básicos e as liberdades políticas foram
suprimidas pelo Estado. (...) Realizámos os nossos concertos punk porque o
Estado russo é rígido, fechado e dominado por castas cuja política está de tal
modo ao serviço de interesses corporativos que só de respirar o ar da Rússia
nos dá náuseas”. E, depois de citar Aleksander Vvedensky (e os outros futuristas russos dos anos 20 e 30 dizimados pelo estalinismo), Dostoyevsky, Sócrates e Montaigne, concluiu, evocando a própria ‘Punk Prayer’: “Por estranho que pareça, todas as nossas canções acabaram por se revelar proféticas, incluindo a que diz ‘O chefe do KGB, o santo número um, escoltará até à cadeia os indignados que protestam’. Era de nós que falávamos! Mas o que importa, agora, é a frase seguinte: ‘Abram as portas, corram com as insígnias militares e juntem-se a nós para saborear a liberdade’”.
A verdade é que as Pussy Riot não são aquilo que nos habituámos a designar como “uma banda”: integrando cerca de 10 performers e 15 elementos responsáveis pela logística técnica (incluindo filmagem, montagem e distribuição de vídeos via-Internet), são elas próprias uma espécie de “braço armado punk” do colectivo radical de "street-artists", Voïna (“Guerra”), a quem, em Agosto do ano passado, o "graffiter" britânico, Banksy, dedicou um episódio do programa “The Antics Road Show”, no Channel 4: “A Rússia. Terra de arquitectura grandiosa, excelente literatura e corrupção policial endémica”, narrava a voz-off enquanto as imagens mostravam as “performances artísticas extremas” dos últimos cinco anos destinadas a provar que “a polícia não é imbatível” e que incluíram a pichagem nocturna de um falo gigante numa ponte levadiça de São Petersburgo que, quando erguida, apontava para o edifício-sede do FSB (ex-KGB) ou a "Fuck for the heir Puppy Bear!", “fuck action” pública de grupo, levada a cabo, em Fevereiro de 2008, no Museu de Biologia de Moscovo – na sala “Metabolismo e energia dos organismos” – em protesto contra a passagem de testemunho de Putin a Medvedev (“medvedev”, em russo, significa “urso”), nas muito contestadas eleições desse ano.
Por isso, se existe alguma verdade no que, a 3 de Agosto, em “Making Punk A Threat Again”, Spencer Ackerman escrevia no “Foreign Policy” – “As Pussy Riot são - e tomando de empréstimo, por um segundo, o lema dos Clash - a única banda que realmente interessa” – vendo nelas o derradeiro elo de vencedoras, pelo martírio, numa longa linhagem de heróis punk parcos de vitórias reais, será mais exacto encará-las como brigada de teatro de guerrilha urbana mais afim das tácticas Situacionistas do que do, ainda assim, convencional, modus operandi punk: não existem discos físicos das Pussy Riot que possam ser comprados ou descarregados da net. O que há são momentos – sobre um andaime erguido nos corredores do metro de Moscovo, na rua, em equilíbrio sobre o tejadilho de um autocarro, na Praça Vermelha –, primária e entusiasticamente coreografados, gritados num idioma incompreensível para todos os não-russos por um número variável de personagens femininas coloridas de rosto oculto, registados e lançados para o mundo-www, sem necessidade de intermediária "indie" ou "major". E capazes de, apesar de todos os obstáculos, fazer passar, instantaneamente, o recado. Ou de, no dia do julgamento, oferecer aos surpreendidos moscovitas a descoberta das estátuas da capital russa com as cabeças cobertas pelos icónicos passa-montanhas multicores. Porque se, afinal, o punk pode ser, de novo, ameaçador, é por aqui que deverá ser procurado e não – como, seguramente, Greil Marcus seria o primeiro a reconhecer – no "box-set deluxe" remasterizado (3CD + 1 DVD) de Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols, prontinho para sair daqui a um mês.
1 comment:
É um artigo de fundo, profundo, muito bom. :-)
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