01 February 2012

MILAGRES PROFANOS


The Unthanks - The Songs Of Robert Wyatt And Antony & The Johnsons/Diversions Vol. 1 (Live From The Union Chapel, London)

Um pouco à maneira do Paradiso, de Amsterdão, a Union Chapel de Islington, no norte de Londres, é um lugar octogonal de milagres profanos. Não apenas por acolher, regularmente, concertos e outras manifestações artísticas mas porque, muitos deles acabam por adquirir significado marcadamente especial na obra dos seus autores. Para dar um único exemplo, pode recordar-se o concerto irrepetível de Björk, com o Brodsky Quartet, de 1999 (publicado em CD em 2000), momento de realinhamento dos planetas no mapa estético da islandesa. Sobre as Unthanks, talvez não seja possível afirmar exactamente o mesmo mas não será menos pertinente reparar como Diversions Vol. 1 constitui o tipo de gesto lateral e pouco previsível na trajectória de um grupo que (embora nunca purista e ortodoxo) tendia a deixar-se arrumar na gaveta folk. O mais interessante é mesmo a indicação de se tratar do Vol.1. Porque, como anuncia Adrian McNally – teclista, percussionista e Mr. Rachel Unthank –, este é só o capítulo inicial no registo de outras actividades extracurriculares que já passaram pela colaboração com a Brighouse and Rastrick Brass Band (gente importante na vetusta tradição das bandas de mineiros britânicas) e que, a avaliar por confissões deixadas cair aqui e ali, bem poderiam chegar a conspirações com Sufjan Stevens (Illinoise: "all-time favourite album" de Rachel) ou com The Voice Squad (trio vocal masculino de Dublin, altamente colocado no panteão Unthank).



Não é necessário especular demasiado: igualmente incensados (e já anteriormente interpretados) pela banda da Northumbria, Robert Wyatt e Antony Hegarty são, agora, objecto do "make over"-Unthanks e é por aí mesmo que se deve falar de milagre. Wyatt já o reconheceu (“Fomos abençoados por anjos. Se tivesse de levar para a proverbial ilha deserta uma síntese do que, durante anos, eu e a Alfie fizemos, não seria nenhum dos nossos discos mas sim as cristalinas interpretações das Unthanks”) mas quem lhes deverá estar verdadeiramente grato é Antony: conseguir adivinhar que, sob a espessa camada de melaço sentimental e para além do trémulo balido vocal dos álbuns de Antony & The Johnsons, se ocultavam canções aproveitáveis e saber convertê-las em algo bem melhor do que isso é, sem dúvida, do domínio do sobrenatural. "Bird Gerhl", "You Are My Sister" e "For Today I Am A Boy", em particular, despidas até ao osso, envolvidas pelas luzes e sombras das vozes de Rachel e Becky, pelo impressionismo do piano de McNally e pelas cordas de Niopha Keegan e do quarteto adicional, demonstram uma vez mais que nem sempre são os autores os melhores intérpretes da sua obra.



Acerca de Robert Wyatt, não se pode, obviamente, dizer outro tanto. Cada uma das suas gravações é um baú de preciosidades raras pelo que ousar tocar-lhes e reinventá-las exige doses iguais de talento e descaramento. As Unthanks já haviam prestado provas, com louvor e mérito, em “Sea Song” (que, aqui, reaparece), mas, nas restantes oito, permitem-nos compreender integralmente os motivos da genuflexão de Wyatt: é impossível elevar o grau de violência e avassaladora elegância simultâneas com que silabam “You planted everlasting hatred in my heart” (de "Out Of The Blue’" ou suplantar a forma como transformam a perplexidade de "Free Will And Testament" (“Given free will but within certain limitations, I cannot will myself to limitless mutations, I cannot know what I would be if I were not me, I can only guess me”) em canção de embalo lunar e assombrada, para não falarmos da celebração de "Dondestan" (com "clog dancing" incluído) ou do quase milesdaviseano "Lullaby For Hamza". Venha o segundo volume.

(2012)

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