09 January 2012

O ESCÂNDALO FILOSÓFICO


The Smiths - Complete (8 CD)


Tom Waits - Original Album Series (5 CD)


Serge Gainsbourg - Histoire de Melody Nelson (2 CD + DVD)

Em 2007, por altura da publicação da suite orquestral, The BQE, Sufjan Stevens declarava ao “New York Mag”: “O rock’nroll morreu, é uma peça de museu. Não tem já nenhuma viabilidade. Hoje, existem grandes bandas de rock. Adoro os White Stripes e os Raconteurs. Mas são peças de museu. Quando vamos ouvi-los a um clube é como se estivéssemos a ver o Canal História. Apenas reencenam antigas sensações. Invocam os espíritos dessas eras – os Who, o punk rock, os Sex Pistols ou outros quaisquer. Mas tudo isso já foi feito. A rebelião terminou”. No perímetro da cultura pop, afirmar isto é, praticamente, assinalar o encerramento daquele ciclo que, quase um exacto século antes, em 1909, “no promontório extremo dos séculos”, Marinetti, incendiado pelo “amor ao perigo e o hábito da energia e da temeridade”, no Manifesto Futurista, escancarara: “Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda a natureza! Queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários. Museus: cemitérios!... Quereis vós, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nesta eterna e inútil admiração do passado, da qual só podereis sair fatalmente exaustos, diminuídos e pisados? Venham, pois, os alegres incendiários de dedos carbonizados! Ateiem fogo às estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais, para inundar os museus!... Oh! a alegria de ver boiar à deriva, laceradas e desbotadas sobre aquelas águas, as velhas telas gloriosas!...”



Sufjan Stevens não terá toda a razão mas uma considerável parte dela tem, de certeza: ao contrário do que Marinetti preconizava, o universo pop – independentemente dos aventureiros e exploradores de algumas terras incógnitas que persistem – converteu-se no palco privilegiado de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários que, divididos por reavaliações históricas de obras e discografias, exumações de génios (justa ou injustamente) ignorados, compilações de “raridades” e memorabilia avulsa, pura e simples necrofilia ou (sim, isso mesmo!) organização do acervo de museus, contribuíram para que a essência da pop (viver intensamente o presente do indicativo) se tenha, progressivamente, deixado substituir pelo abuso do passado, infinitamente alimentado por biografias, livros de memórias, documentários, biopics, regressos de bandas, tournées de celebração nostálgica, ressurreições discográficas, edições comemorativas de revistas e mil e um outros pretextos para a celebração de efemérides. E não poderia descobrir-se melhor exemplo actual do que, em 2012, os anunciados festejos do centenário do iconoclasta supremo, John Cage (ele que gostava de contar que, quando perguntou a Aragon como se escreve a História, este lhe respondeu “Tem de a inventar”).



Concentrando-nos no objecto-CD/vinil, como defende Simon Reynolds, em Retromania, estamos perante “um escândalo filosófico”, na medida em que, ao apropriar-se de um momento tornando-o perpétuo, não se limita a violar a natureza última da pop (“instantes definidores de uma época como a aparição de Elvis Presley no ‘Ed Sullivan Show’, os Beatles chegando ao aeroporto JFK, Hendrix imolando o ‘Star Spangled Banner’ em Woodstock, ou os Sex Pistols vomitando palavrões no programa de Bill Grundy”) mas também, ao permitir a sua fixação e infinita repetição, abre caminho para que “o momento se transforme em monumento”. A museificação da pop não seria, porém, verdadeiramente, um problema (o radicalismo arrasador dos Futuristas, óptimo combustível para a redacção de manifestos, nunca chegou a passar aos actos...) se, em paralelo, confirmando Sufjan Stevens, não ocorresse também um inquietante processo de mumificação. Para o qual, o desespero da indústria discográfica em tempos de vacas anorécticas, tem contribuído decisivamente ao rapar repetidamente o fundo de todos os catálogos, reeditando-os, reembalando-os e re-re-remasterizando-os, no intuito de arredondar os balanços de fim de ano, longe das glórias de outrora.



Quer isto, então, dizer que teremos enormes razões de queixa se nos oferecerem uma visita às Galerias dos Uffizi da Rough Trade, Asylum e Universal para desfrutarmos da oportunidade de admirar os seus Botticelli, Caravaggio e Giotto, no caso, respondendo pelos nomes de The Smiths, Tom Waits e Serge Gainsbourg? Seria preciso muita ingratidão. Poder ter, numa única caixa (ainda que sem nenhuns outros luxos acessórios) toda a obra da banda que, numa tarde de Maio de 1982, no 334 da Kings Road, em Stretford, sob os auspícios de "You’re The One", das Marvelettes, acasalou para a eternidade pop Morrissey e Johnny Marr, não é oferta que se recuse. Escutar, de novo, de fio a pavio, a forma como a filigrana eléctrica, repescada dos Byrds e vitaminada no pós-punk, se fundia, em gravidade zero, com os estados de alma da "young Britain" nos anos Thatcher (“we may be hidden by rags but we’ve something they’ll never have”), literalmente despia a "love song" até à obscena evidência (“Let me get my hands on your mammary glands and let me get your head on the conjugal bed”), ao mesmo tempo que se exibia literata (“There's more to life than books, you know, but not much more”) e orgulhosamente arrogante (“Fame, fame, fatal fame, it can play hideous tricks on the brain, but still I'd rather be famous than righteous or holy”), está longe de ser coisa pouca.



E, agora que já quase só o (re)conhecemos sob a pele de inventor de sublimes sinfonias da sucata “avessas a linhas rectas”, o que dizer da proposta de revisitar os primeiros passos do Tom Waits-filho-dilecto-de Kerouac anterior a Swordfishtrombones, a persona sobre que ele próprio, mais tarde ironizaria (“Tomamos um cálice de ‘sherry’ antes de nos deitarmos, lemos um bocadinho de Balzac, vamos para a cama às oito e meia e, quando damos por isso, estão a contar histórias acerca de nós com uma garrafa de Cutty Sark, numa pensão manhosa, a ver revistas porcas”)? O de Nighthawks At The Diner, sempre a jeito pela madrugada, ou do magnífico Small Change? Dizemos logo que sim, claro. Tão enfaticamente como quando nos sugerem reler Lolita em versão Gainsbourg/Birkin, isto é, Histoire de Melody Nelson (mais "outtakes" e DVD contextualizador), viagem sem regresso envolta nos veludos e cetins das orquestrações de Jean-Claude Vannier. Mas do que gostaríamos mesmo era de poder, hoje, olhar à volta e ver inúmeros Smiths, Waits e Gainsbourgs. Totalmente diferentes deles.



(2012)

2 comments:

Lola said...

Minha definição do sec. XXI.
Não quero mais escutar vozes.

João Lisboa said...

Explique isso melhor sff.