01 September 2011

DA VIDA DA MÚSICA E DAS IMAGENS

















The Suburbs - Arcade Fire & Spike Jonze (CD + DVD)

As excepções à norma são inúmeras. Mas o que sugere a epígrafe de Keats que Claudia Gorbman colocou no inicio de Unheard Melodies – Narrative Film Music (“Heard melodies are sweet, but those unheard are sweeter”, de “Ode On A Grecian Urn”) e que, ao longo das cerca de duzentas páginas de uma das “bíblias” dedicadas ao estudo e investigação da música para cinema, desenvolve, é a ideia segundo a qual uma banda sonora será tanto mais eficaz quanto mais subconsciente e subliminarmente concretizar a sua missão de sublinhar, enfatizar ou contrariar o sentido daquilo que a imagem, por si só, não seria capaz de transmitir. Em meia dúzia de linhas: “a música actua como um dispositivo de sutura, auxiliando no processo de transformar a enunciação em ficção, diminuindo a consciência da natureza tecnológica do discurso fílmico. (...) Eu oiço (não muito conscientemente) esta música que as personagens não ouvem, eu existo neste banho de emoções, esta é a minha história, a minha fantasia, que se desenrola perante mim e para mim no ecrã (e das colunas de amplificação para fora)”.
























Um outro peculiar efeito colateral da coabitação entre cinema e música encontra-se no modo como sonoridades pouco ou nada "mainstream" podem ser incluídas, sem desconforto, num filme comercial (quem, fora do ecrã, estaria disposto, em 1956, a consumir a quase hora e meia das "electronic tonalities", de Louis e Bebe Barron, para Forbidden Planet?) ou no efeito de transfiguração exercido sobre espécimes musicais esteticamente desfavorecidos devido ao facto de terem coexistido com aquela narrativa visual (a filmografia integral de Tarantino). Mas, verdadeiramente interessante é assistir, em directo, à forma como todos estes pontos de vista são confirmados em Scenes From The Suburbs, o filme de cerca de meia hora que Spike Jonze realizou, inspirado no último álbum dos Arcade Fire.



Abundantemente premiado e avidamente consumido, The Suburbs não era, contudo, senão mais um exemplo daquela variedade de pop/rock messiânico e pomposo (ainda que assaz derivativo da era "prog" e dos épicos "à la" Springsteen) que a banda canadiana registou como marca própria e que apenas teve de aguardar o tempo necessário para cumprir a previsível trajectória de minoritário produto "indie" até à recepção em glória pelas massas. Já seria suficientemente interessante que, daí, pudesse ter resultado um argumento de perturbadas memórias de adolescência, encenadas em cenário distópico de sci-fi, no pesadelo climatizado de uns imaginários subúrbios de Austin, sob lei marcial (a inspiração, segundo Win Butler – co-argumentista com Jonze e o irmão, William – terá vindo tanto dos filmes de Terry Gilliam, quanto de Red Dawn, de John Milius, ainda que Virgin Suicides, de Sofia Coppola, também pudesse ser convocado a depor).



Verdadeiramente notável, porém, é a dupla transformação que, neste novo contexto, as canções dos Arcade Fire sofrem: constrangidas a um obrigatório segundo plano, cumprem plenamente o objectivo de actuarem como discreta e indispensável fonte de alimentação narrativa complementar; mas, potenciadas pelo fluxo fragmentário das sequências, ganham um sentido infinitamente mais denso e rico do que quando se encontravam exclusivamente entregues a si próprias, na superfície cega do CD. A fechar o círculo, não é menos curioso que o videoclip criado para "The Suburbs" (também de Spike Jonze, para além da obra cinematográfica – Being John Malkovich, Adaptation, Where The Wild Things Are –, com já vasto currículo na matéria, dos Sonic Youth a Björk, R.E.M ou Kanye West), ao inverter os papéis e voltar a atribuir, naturalmente, o primeiro plano à música, deixando às imagens (uma montagem/trailer do próprio filme) um desígnio meramente ilustrativo, o empobrecimento de sentido seja absolutamente notório e drástico. Tudo pesado, uma reedição de The Suburbs que vale, sem dúvida a pena.

(2011)

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