24 February 2011

O CONVITE À VIAGEM















Se Cristina Branco estivesse virada para se inventar problemas, tinha a fórmula perfeita para um mesmo à mão. A saber: ela que, desde o início, fez questão de sublinhar que, apesar de cantar fados, não se via como fadista (ou, pelo menos, do modo como, tradicionalmente, se encara o “ser fadista”), agora que confessa sentir-se mais próxima do que nunca do espírito do fado, tanto em concerto como em disco, a percentagem de fados que inclui tende a encolher seriamente. E, quando lhe chamo a atenção para que isso volta a acontecer no novíssimo Não Há Só Tangos Em Paris, primeiro contra-ataca (“Mas estão lá dois fados tradicionais!...") e, depois, encaracolando a argumentação, acaba por levar a água ao seu moinho: “Eu diria até que é um encontro definitivo com o fado mais tradicional. Acho que me identifico mais, agora, com certos fados e, na forma como o interpreto, sinto que já consigo dizer o que quero através dele. Não é uma coisa de agora, se calhar, já vem desde o Live, nos concertos aparecem fados tradicionais. Sou mais crescida. É preciso maturidade. E maturidade vocal. Hoje, posso dizer que é assim que o sinto, esse é o meu fado. Antes, parecia um pardalito a cantar. Tanto pelo timbre como pela forma de interpretar. É o palco e o que vamos ouvindo, o eco da nossa voz e a nossa experiência artística que nos dá isso, não é só a vida. Não me venham com essas tretas, não sou uma mulher sofrida, uma ‘mulher do fado’... nada disso, muito pelo contrário, acho que tenho uma vida perfeitamente normal”.
















Porquê, então, esta bissectriz entre fado e tango? “Gosto de me reinventar nas músicas e de descobrir coisas novas nelas, como se estivessem escondidas atrás de algumas palavras E, acima de tudo, porque têm muito em comum: ouvindo discos antigos do Gardel, de repente, dizia ‘Caramba, isto é um fado!...’ Tal como se poderia afirmar que "A Moda das Tranças Pretas" é um tango... “Exactamente!” Porém, o índice de surpresas-não-fado neste álbum vai bastante mais longe do que isso, acolhendo também "Les Désesperés", de Jacques Brel, ou uma inesperada melodia de João Paulo Esteves da Silva para a "Invitation Au Voyage", de Baudelaire’... “É inesperada? Sim, deve ser, porque tudo o que, até agora foi feito em torno desse poema, não tem nada a ver com o que está ali… Lendo o Spleen e "L’invitation Au Voyage", há duas coisas distintas: o respeito imenso que os franceses têm pelo Baudelaire e uma leitura de uma portuguesa daquilo que é o poema mais iluminado que está ali naquele livro. Foi sempre considerado por outros autores como uma coisa soturna mas não me parece nada que exprima uma atitude deprimida ou depressiva, fala da viagem e da vontade de partir, porque teria de ser uma coisa negra?… Quando se ouve a música do João Paulo, ela tem muito mais a ver com aquele poema do que tudo o que conhecia antes. Cheguei a propor que o disco se chamasse “Invitation Au Voyage” mas disseram-me que não podia ser”.



A ideia é a do transatlântico que passa por Buenos Aires, pára em Lisboa e (em pirueta geográfica) atraca em Paris, a viagem e a vontade de partir: “Há um outro tema que também fala disso e da dualidade do narrador da história, o "Anclao En Paris": é a história de um argentino (deve ser um bandido que não pode voltar para Buenos Aires) que foge para Paris e ali fica exilado. Tem uma saudade louca de Buenos Aires mas o "faubourg" é uma coisa que também lhe apela muito ao coração. Aí pelo meio, há o sentimento da saudade mas também uma necessidade grande de permanecer no desconhecido. Já, no Ulisses, estes temas estavam presentes, são os temas da minha vida, não posso fugir muito daqui”. Desta vez, porém, ao contrário do anterior Cronos, o conceito não esteve inteiro e acabado desde o princípio: “Houve coisas que surgiram há algum tempo como o ‘Soluço’, do Vasco Graça Moura. Aquilo é um orgasmo, tem muito a ver com a sensualidade. A dada altura, pensei fazer um disco que remetesse para outro anterior, o Sensus. Depois pensei naqueles álbuns antigos da Amália, o fado e o tango e o Gardel e os anos 20... e tudo aquilo começou a mexer comigo.




A minha intenção foi reunir temas diferentes num mesmo propósito. Houve pessoas a quem pedi especificamente poemas, nomeadamente ao Carlos Tê – pedi-lhe um folhetim e que fizesse a música também: o texto enviou-mo logo, a música demorou seis meses, estava um bocado aflito… –, à Manuela de Freitas pedi um tango... pedi-lhe uma daquelas histórias de faca e alguidar e ela escreveu o 'Talvez' e mais uma outra para o fado ‘Súplica’, ‘Se Não Chovesse Tanto Meu Amor’. E, depois, o António Lobo Antunes que não tive a ousadia de contactar mas pedi a um grande amigo meu, o Júlio Pomar, que o fizesse e ele escreveu-me aquela coisa maravilhosa (‘Quando Julgas Que me Amas‘). Para além disso, como gosto muito da simplicidade do Pedro, dos Deolinda, que capta muito bem aquelas subtilezas picarescas da nossa sociedade, pedi-lhe que escrevesse uma daquelas histórias do arco-da-velha que cheirasse a fado por todos os lados e dali saiu ‘Não Há Só Tangos Em Paris’. Sem querer, porque, na altura, nem lhe disse que ia cantar Brel e Baudelaire, ele acabou por passar exactamente pelos sítios que eu queria e o fado acabou em Paris, de repente"
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Na lista de afinidades estéticas e poéticas que acabam por ir parar aos álbuns e concertos de Cristina (já cantou Joni Mitchell, Chico Buarque, José Afonso, Amália), um dia, ainda poderão ir, facilmente, parar outras vacas sagradas: “Assim de ‘vacas americanas’... (risos) a Ella, Billie Holiday, Sarah Vaughan... mas também o Cohen, o Dylan. Recentemente, fiz um trabalho com a Sinfonietta de Amesterdão em que cantei o Cohen, o Brel, o Schumann, o Debussy. Faz todo o sentido. É quase incontornável não cantar os autores, do fado ou outros, que me fazem crescer”. Fechemos, enfim, o círculo e encontremos-lhe a lógica possível: “Quando canto um fado tem de fazer muito sentido, tem de mexer muito comigo para o cantar. Mas é sempre um fado com um 'twist', eu não canto fado como ele, normalmente, se canta. E porque acontece isso? Porque dou liberdade a quem compõe as músicas, proponho sempre que olhem para a música como olham para mim. E, de facto, aquilo raramente dá fado!...” (risos)

(2011)

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