10 May 2010

VEIAS E OSSOS DO NORDESTE



Simplifiquemos um pouco mas não exageradamente: desde a era dos Fairport Convention, Steeleye Span, Pentangle, Richard & Linda Thompson e das irmãs Collins – ainda que com valiosíssimos porta-estandartes como June Tabor durante o interregno –, que não surgia nenhum grupo na cena folk inglesa capaz de deixar absolutamente clara a ideia de que, no idioma popular tradicional, circulava ainda sangue suficientemente oxigenado e pronto a garantir que “os anos de ouro” nunca seriam apenas uma antiga e saudosa memória. Rachel Unthank & The Winterset (actualmente, The Unthanks), em três magníficos álbuns – Cruel Sister (2005), The Bairns (2007) e Here’s The Tender Coming (2009) –, mudaram tudo e, hoje, Rachel Unthank também já não duvida disso: “Aparentemente, os media voltaram a interessar-se pela palavra 'folk', deixou de ser um palavrão. Poderá ter acontecido devido a alguma frustração com a pop produzida em massa ou à vontade de descobrir qualquer coisa mais autêntica. Não estou certa que este novo 'revival' possa ter a mesma dimensão do dos anos sessenta, quando praticamente todos os jovens frequentavam os clubes de folk. Mas há, seguramente, um interesse renovado”.



A genealogia das irmãs Becky e Rachel, filhas mui legítimas do que já foi caracterizado como “a república espiritual de Northumberland”, também ajudou: “É verdade, os nossos pais estiveram envolvidos no primeiro 'folk-revival', sempre os vimos a cantar e a dançar músicas tradicionais e, desde miúdas, participávamos também; aprendemos o 'clog-dancing', íamos a festivais, cantávamos em clubes de folk, aprendemos imensas canções. Eram as histórias que as canções contavam que a mim e à minha irmã nos atraía. Foi, realmente, um ambiente óptimo para nós crescermos. Todo o Nordeste de Inglaterra tem um sentido de identidade extremamente forte, há um orgulho regional muito intenso, apesar de ser uma zona que atravessou tempos bem difíceis. E coisas como as indústrias mineira e naval – sempre com gente a chegar e a partir – ou o facto de estarmos encostados à Escócia, com todas as guerras que aqui foram travadas, tudo isso alimentou a tradição e as canções que dela surgiram”. Naturalmente, este é um caldo de cultura que, como adiante na conversa se compreenderá, facilmente afia facas de dois gumes. Ou mais.


Por um lado, pode exaltar ânimos “puristas” perante a “heresia” de alguns arranjos e a opção por temas de Robert Wyatt ou Bonnie Prince Billy. Mas, com isso, as Unthanks lidam bem: “Seja qual for o tipo de música que façamos, haverá sempre quem goste e quem não goste. Existe, de facto, na cena folk, quem pense que fomos longe de mais. Por mim, não existe aí nenhum problema. Sempre ouvimos tipos de músicas muito diferentes e isso reflecte-se na forma como compomos e arranjamos. Muito egoistamente, pretendemos que essa música nos estimule e que a achemos interessante, ainda que, sem a menor dúvida, o nosso coração esteja com a música tradicional. Mas, mais do que procurar agradar ao público, queremos que nos satisfaça a nós. De outro modo, não estaríamos a ser honestas”.



Por outro, o reforço da identidade – na Northumbria, mais uma questão de classe do que local – distingue a folk inglesa das congéneres irlandesa e escocesa: “Os escoceses e irlandeses sentiram uma maior necessidade de afirmar a sua tradição. Para os ingleses, isso é capaz de ser mais difícil por poder ser encarado como um gesto imperialista. Claro que estas coisas evoluem e, no fundo, a maioria destas canções têm uma origem proletária. O Noroeste, é uma zona marcadamente operária e muito politizada. Quando não é necessário lutar-se pela identidade nacional, luta-se pelos direitos de trabalho. A indústria mineira está muito presente nas canções. O Birtley Folk Club, por exemplo, pertence a uma velha família de mineiros comunistas, socialistas e humanistas. Mesmo ‘The Testimony Of Patience Kershaw’ embora seja uma canção do Yorkshire que se situa mais a Sul do que a região de onde nós somos, ainda pertence ao Norte e partilha as mesmas referências culturais. De um modo geral, escolhemos canções com histórias acerca da dureza da vida e da luta das mulheres, no fundo, sobre a condição humana, histórias sombrias… e isso corre nas veias e está agarrado aos ossos do próprio Nordeste, é um território lindíssimo mas selvagem e agreste”.



O gume traiçoeiro da faca surge, porém, quando – como conta Rachel – as questões identitárias se deixam sequestrar (e isso acontece com demasiada frequência) por meliantes racistas: “Este é um momento muito interessante para a política no contexto da folk: existe um movimento chamado 'Folk Against Fascism' que foi constituído quando se descobriu que o British National Party [extrema-direita] incitava os seus militantes a infiltrar-se nos grupos de 'morris-dancing' e nos eventos folk, reivindicando-os como marca de identidade nacionalista. Para mim, a folk tem apenas a ver com gente trabalhadora, com uma atitude inclusiva e de partilha”. A notícia de que isso sucede exactamente no instante em que o über-clássico, Morris On, acaba de ser reeditado, provoca uma enorme gargalhada a Rachel: “A sério?... O Morris On era o disco que, aos sábados de manhã, os nossos pais punham a tocar para que nós nos entretivéssemos a dançar e eles pudessem dormir até mais tarde!...”

(The Unthanks - Centro Cultural Olga Cadaval, Sintra, 10 de Maio, 21h30)

(2010)

3 comments:

menina alice said...

\o/ Eu vou. \o/

João Lisboa said...

:)

Rui Gonçalves said...

Falhei isto miseravelmente, mas as aulas a isso obrigaram...