27 October 2009

O ESPÍRITO DE BING CROSBY


Bob Dylan - Christmas In The Heart

A cinco dias do Natal de 2006, a edição número 34 da Theme Time Radio Hour, de Bob Dylan, abria com Ellen Barkin – a voz "oficial" do genérico inicial - anunciando: “It's nighttime in the Big City, a department store Santa sneaks a sip of gin, mistletoe makes an old man sad, eight reindeer land on the roof of the Abernathy Building”. A grande noite urbana, espaços comerciais, um assalariado mascarado e bêbedo, melancolia, solidão e criaturas da mitologia popular num cenário de ficção cinematográfica. É o que a maioria das festas do calendário religioso tem de melhor: porque primordialmente pagãs, o finíssimo (e, afinal, tão recente) revestimento cristão, resiste mal à erosão do tempo e circunstâncias bem mais materiais e terrenas tendem a ressurgir e ocupar o primeiro plano. Durante uma década (a de 80), Dylan poderá ter-se imaginado "born again", mas americano, contemporâneo e atento à História nunca deixou de ser.


Até no persistente prazer da efabulação que o conduziu a situar a realíssima Sirius XM Radio num inexistente Abernathy Building (dotado de pista de aterragem para renas) rodeado dos igualmente imaginários Studio B, Samson's Diner, Elmo's e Carl's Barber Shop, recorrentes no universo do DJ Bob Dylan. E poderá não ser ainda saber adquirido mas é importante que se vá dizendo como os 103 episódios das três temporadas da TTRH são já parte fundamental da sua obra. Não tanto pela (obviamente importante) missão divulgadora da mais ou menos obscura memória musical americana, mas, principalmente, pelo modo como, entre canções, intervenções de convidados, farrapos de poesia, comentários irónicos, seriíssimos ou meramente informativos, alusões históricas, conversas com ouvintes e outros tantos “themes, dreams, schemes and things of that nature”, o puzzle cultural, mental, social e mítico da nação americana vai emergindo. A dedicatória final do Natal de há três anos era “We wish you a Merry Christmas and a Happy New Year, a pocket full of money and a cellar full of beer”.

















Para o Natal deste ano – e enquanto a possibilidade de uma quarta temporada permanece em suspenso –, Dylan optou, até certo ponto, por repetir a mesma estratégia que deu origem ao último álbum, Together Through Life: se esse era uma potencial emissão da TTRH constituída apenas por criações originais de Bob Dylan, Christmas In The Heart apresenta-o como intérprete de quinze "Christmas songs" clássicas sobre as quais paira muito menos o espírito dos blues e da country do que o de... Bing Crosby. Acerca do qual, convém recordar, em 1985, Dylan afirmou tratar-se de um mestre do fraseado vocal cujas canções ainda, um dia, gostaria de gravar. Delas, estão aqui três – “I’ll Be Home for Christmas”, “Silver Bells” e “Do You Hear What I Hear?” – num reportório essencialmente recolhido nas reminiscências dos Natais do jovem Zimmerman, nas décadas de 40 e 50, no gelado Minnesota. Com um pé no kitsch (dos coros à la Ray Conniff, cortesia das Ditty Bops, à fotografia “Mãe Natal” da pin-up, Bettie Page, no booklet) e outro, inevitável, na América lendária (o lamento da pedal-steel guitar em “Winter Wonderland”, a desbragada polca Tex-Mex de “Must Be Santa”, a quase waitsiana “Silver Bells”), “Christmas In The Heart” é um belo divertimento sazonal por uma boa causa: todos os lucros reverterão para as organizações de combate à fome Feeding America, World Food Programme e Crisis. Woody Guthrie aprovaria.

(2009)

3 comments:

fallorca said...

Esta peça não é a do Actual? Não me obrigues a procurá-lo

João Lisboa said...

É.

Táxi Pluvioso said...

O Shabtai Zisel ben Avraham, ainda comemora o Natal?