03 November 2008

O ESTETA NÓMADA



Hector Zazou & Swara - In The House Of Mirrors




Hector Zazou & Katie Jane Garside - Corps Electriques

Quando, a 8 de Setembro passado, Hector Zazou morreu, devorado, em meses, por uma neoplasia do sistema linfático, desapareceu muito mais do que um músico invulgar. Com ele, extinguiu-se também todo um universo sonoro particularíssimo que, se foi suficientemente celebrado na devida altura – à escala, naturalmente, de uma música que nunca viveu de cortejar multidões –, não se poderá exactamente afirmar que deixou descendência. Olhado de forma desatenta, poderia afirmar-se que se tratou apenas de um teórico-prático (e, não deixando de ser fertilmente prático, Zazou gostava, de facto, de teorizar intensamente) da “world music” encarada sob uma perspectiva intelectual, quase académica. Observado – e, sobretudo, escutado – mais de perto, no entanto, o que descobrimos é uma espécie de Brian Eno de raio planetário que, embora preferindo trabalhar sobre as diversas tradições musicais locais, não se restringia a elas e as encarava a todas essencialmente como matéria-prima sonora, pronta para ser reconfigurada, moldada e subtilmente desterritorializada.



Ajuda um pouco conhecer melhor a biografia de Zazou, aliás, Pierre Job, nascido na Argélia em 1948 e, no início da década de 60, emigrado com os pais “pieds-noirs” (mãe francesa, pai espanhol) para Marselha. Casa de partida, a meias com Joseph Racaille, nos muito beefheartianos e “soixant-huitards”, Barricades, rapidamente reconvertidos em ZNR, agora, alimentados a Satie e “krautrock”. Pausa para o regresso de Pierre Job, jornalista, chefe de redacção da “Actuel” dos anos 80, a revista dos tópicos “nouveaux et intéressants”, do novo cosmopolitismo nómada e do “futurismo primitivo”. É durante uma viagem pelo Congo e Zaire com o director; Jean-François Bizot, que Zazou, o músico, reemerge e, ao lado do zairense Bony Bikaye, percorre as primeiras etapas da sua aventura transcultural.



Ele que se descreveu como “uma árvore com as raízes espalhadas pelo mundo”, entre intervalos de neo-classicismo, prosseguiria com as Nouvelles Polyphonies Corses, Sahara Blue, Songs From The Cold Seas e Strong Currents, onde, em improvável mas surpreendentemente coerente coabitação, se reuniram John Cale, Gerard Depardieu, David Sylvian, Björk, Rimbaud, Laurie Anderson, Ryuichi Sakamoto, Lisa Germano, corais corsos, Khaled, Suzanne Vega, Harold Budd, Siouxsie Sioux, Bill Laswell, Jane Birkin, Sussan Deyhim, xâmanes do Ártico, Jon Hassel, Barbara Gogan, Manu Dibango, as Värttinä ou Lisa Gerrard. Mas, paralelamente e em simultâneo, estimulado pelo pensamento de Raymond Roussel, Deleuze e Derrida, colaboraria também com o físico e pintor Bernard Caillaud, produziria Sandy Dillon, a siberiana Sainkho, a tibetana Yungchen Lhamo, a uzbeque Sevara Nazarkhan, deixaria a meio – por divergências de rumo estético – um mítico “lost album” de Né Ladeiras, e seria escutado ao lado de Robert Fripp, Brian Eno e Peter Buck.


Katie Jane Garside

In The House Of Mirrors e Corps Electriques, os seus dois últimos álbuns (ambos de 2008), são a derradeira demonstração desse compulsivo nomadismo mental. No primeiro, colocou frente a frente instrumentistas virtuosos da Índia e do Uzbequistão (violino, alaúde, tambur), um violinista húngaro, o pianista de flamenco, Diego Amador, o gaiteiro e flautista galego, Carlos Nuñez e o trompetista norueguês, Nils Petter Molvær, e, de acordo com um programa ímplicito (“Ir ao coração do som, ver o tecido sonoro como através de um microscópio, apreender as notas por meio de um processo de ampliação de certos elementos: notas e ressonâncias formam vagas que obrigam o instrumentista a mergulhar para além da superfície da onda até ao interior do próprio som”) e uma piscadela de olho a The Lady From Shanghai, de Orson Welles, abriu generosos espaços para a respiração dos timbres e para a predominância de um espírito de austeridade estética – dir-se-ia que se limitou a propor a atmosfera acústica adequada –, só, aqui e ali, subtilmente desviada por quase indetectáveis “loops” de percussão, aguadas e “glitches” electrónicos que potenciam magnificamente o pretendido jogo de espelhos. Corps Electriques, de novo com Molvær e os fidelíssimos Lone Kent e Bill Rieflin, entrega o primeiro plano à voz de Katie Jane Garside, veterana “riot grrrl” (Daisy Chainsaw e Queen Adreena, com passagem pelos Test Department), performer e fotógrafa, que, aqui, inventa uma personagem extrema, entre Lydia Lunch e a Björk de Vespertine, numa sucessão de cenários distópicos próximos dos de Blade Runner, distorções e estridências, imponderabilidades inquietantes e inalações narcóticas de pós-trip hop. A perfeita despedida (dupla) de Zazou.

(2008)

3 comments:

Anonymous said...

Que saudades do "Actuel"...

Anonymous said...

O que nos vale é a jukebox do João para nos manter "actuel"izados...
Repostei-to freneticamente ;)

gonzo said...

seria posible reponer el post?