DAQUI NINGUÉM SAI VIVO
Nick Cave & The Bad Seeds - Murder Ballads
Anjo negro dos mundos subterrâneos ou príncipe "junkie" das trevas, Nick Cave nunca dissimulou a sua predilecção pelos temas de recorte gótico, de preferência com generosa exibição de lâminas afiadas e abundante derramamento de sangue. O palco podia situar-se nos assombrados pântanos do Sul americano ou nos corredores da morte mas o argumento que alimentava cada uma das suas canções era sempre o mesmo teatro do grotesco, excessivo e, às vezes, caricatural. A personagem-Nick Cave (amplificada por uma recente biografia onde o artista-enquanto-jovem é apresentado como um dostoievskiano psicótico, solitário, heroinómano e irrascível) estava suficientemente afirmada e, mesmo após a inflexão como "crooner" apocalíptico encenada a partir de The Good Son, parecia conter as doses convenientes de dramatismo e convicção. Faltava só conhecer a devastadora componente de feroz humor negro que, nos bastidores, ia arrasando o cenário cuidadosamente montado. Na verdade, ela estava lá, desde o início, mas, em Murder Ballads, uma colecção de dez canções há muito prometida e agora publicada, dedicada ao homicídio como uma das belas-artes, revela ser não apenas o motor narrativo de um óptimo disco como a essência de um cómico irresistível.
Escrever nas paredes com o sangue de uma seringa, investir, de cabeça, em palco, contra a bateria até ela ficar vermelha de hemoglobina ou autorizar os fãs a espetarem-lhe agulhas de vudú durante os espectáculos, terão sido tanto gestos de uma catarse desatinada como variações privadas sobre o modelo do "stand-up comedian". Murder Ballads, entretanto, não deixa muitas dúvidas quanto ao facto de privilegiar esta última dimensão. Numa gloriosa paródia contemporânea sobre aquela literatura popular de cordel que não sabe viver sem os temas de faca e alguidar (no caso, a tradição anglo-americana das "murder ballads"), exige que se encare cada canção como aquilo que, neste contexto, acima de tudo, ela é: um delirante exercício de estilo carregado de sarcasmo onde as personagens resultam sempre melhor quando desenhadas a traço negro e grosso.
É bastante educativa uma viagem "à vol d'oiseau" pelo roteiro. A quase beethoveniana "Song Of Joy" inicial abre, como se impõe, com as palavras "Have mercy on me, sir, allow me to impose on you, I have no place to stay and my bones are cold right through". Logo a seguir (após o extermínio gráfico de uma família inteira à sombra de citações do Paradise Lost, de Milton), o mítico Stagger Lee, garanhão da história dos blues, renasce numa encarnação em que confessa "I'll crawl over fifty good pussies just to get to one fat boy's asshole", em saborosa inversão da lenda. Três homicídios mais tarde (e depois de afogada Kylie Minogue no lodo para comprovar que "all beauty must die"), em "The Curse Of Millhaven", Lottie, uma loira criança com uma boquinha linda escondida pela espuma do ódio, degola os habitantes da aldeia natal, inspirada pelos piedosos ensinamentos bíblicos da mamã que lhe explicara que todas as criaturas de Deus têm de morrer. Carregada de remorsos, evidentemente, quando o longo braço da lei, finalmente, a detém: "There's so much more I could have done if they'd let me!" Segue-se uma lição de moral oferecida às meninas que ninguém advertiu acerca dos perigos de acompanhar estranhos e outra história de armas fumegantes, mas nada nos poderia preparar para os épicos treze minutos de "O'Malley's Bar": mil vezes mais sanguinolento do que qualquer filme de Tarantino e com um rol de vítimas inocentes infinitamente superior, sobre uma cavalgada heróica dos Bad Seeds, desenha em cinemascópio o rasto de sangue de um "serial killer" narcisista ("Ive been known to be quite handsome, from a certain angle and in a certain light").
Por entre pólvora e disparos trovejantes, há debates filosóficos em torno do livre arbítrio, casuais conversas de vizinhos, visões de Francisco de Assis e de S. Sebastião trespassado de flechas, cabeças e tripas voando sobre pilhas de pratos sujos e, no final, um grande plano do protagonista vaidoso contando pelos dedos o número de baixas por que foi responsável, enquanto os megafones da polícia sibilam. Consideravelmente melhor que qualquer Desperado e, visualmente (proeza de tomo numa canção), muito mais eloquente, é o ponto final antes do posfácio: uma versão de "Death Is Not The End", de Bob Dylan, admissão derradeira de que, por mais amaldiçoada que tenha sido a existência (preparai-vos, profetas do suicídio!), a morte não põe fim a tudo. Se calhar, depois dela, tudo será ainda pior!... É o momento para o grande final em que aparecem ou regressam todos os convidados ilustres desta fantástica banda-desenhada inscrita na tradição folk (PJ Harvey, mais-Cave-do-que-Cave em "Henry Lee", Shane MacGowan, Anita Lane e Kylie Minogue) de onde, pela mão de Nick Cave e dos Bad Seeds e sob o omnipresente espectro de um Leonard Cohen que tivesse vendido a alma ao Diabo, ninguém, rigorosamente ninguém, sai vivo. Comédia "gore" do ano.
(1996)
3 comments:
O Nick Cave matou mais gente que o Cecil B. DeMille.
O linquezito para o "Death is not the end" 'tá dêlícia! :D
Desde que ele cortou o bigode a coisa vai descambar.
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