18 October 2008

SORRIR, NÃO SORRIR



Logo na primeira resposta, Aimee Mann trata de esclarecer o significado de @#%&*! Smilers, título do seu último álbum. Mas, numa entrevista dedicada a defender o ponto de vista da desnecessidade do sorriso permanentemente afivelado no rosto, houve bastante mais risos e sorrisos do que a média oficialmente estabelecida e nem mesmo quando a bem séria questão da difícil sobrevivência dos músicos no admirável mundo novo da Internet foi abordada, ela se deixou escorregar para a lamúria.

Começando por decifrar o título do álbum, como deverá ele ser lido?
Fucking Smilers! Tem a ver com aquela figurinha de “cartoon” que insulta as pessoas que insistem em tentar fazê-la sorrir. O que é uma situação verdadeiramente irritante quando a última coisa que nos apetece é sorrir. Não se refere a nenhum tema específico do álbum, é apenas uma ideia para a capa que eu já tinha há bastante tempo. Nasceu da pergunta que me fazem imensas vezes acerca de qual o motivo por que eu não escrevo canções felizes... o que acaba por ser o mesmo que “porque não sorris?”... Se as tais “canções felizes” me interessassem tanto como as outras, provavelmente fá-lo-ia.

Mas qual a razão porque não as acha interessantes?
Não posso avaliar as reacções dos outros mas não diria que as minhas canções são deprimentes. Parece-me que a vida é tão complexa e tão cheia de conflitos que penso ser mais positivo e honesto encarar os problemas de frente do que fingir que eles não existem.



Por outro lado, existe aquela ideia segundo a qual, se estivermos realmente muito em baixo, não há nada melhor para nos animar do que ouvir uma canção deprimente...
(risos) Sim, sim... é verdade. Escutar algo com o qual nos consigamos relacionar pode ser uma ajuda. Se estivermos num certo estado de espírito, apercebermo-nos de que outros também já se sentiram da mesma forma e atravessaram circunstâncias idênticas pode funcionar como apoio.

Essa pressão para o sorriso permanente recorda-me quando estive em Salt Lake City e, junto ao templo mormon, era ininterruptamente assediado por “elders” e “sisters” que não desistiam um minuto de me interrogar se era feliz, se o mundo era belo, se estava bem com a vida... uma coisa, essa sim, verdadeiramente deprimente!...
Siiiim!... Como eu o entendo... (risos)

O seu álbum anterior – The Forgotten Arm – era uma peça conceptual; regressa, agora, com uma colecção de canções sem nenhuma particular relação entre si. A experiência conceptual não é para repetir?
Não senti necessidade de voltar a recorrer a essa estrutura conceptual. Escrevi apenas estas canções como “short stories” sem a obrigação de existir um tema transversal a todo o disco. Claro que existe sempre uma série de tópicos acerca dos quais eu gosto de escrever, uma ou outra canção podem estabelecer pontes entre si, mas tive como referência um outro disco meu, I’m With Stupid, onde cada canção tinha um ponto de vista completamente diferente, até no que dizia respeito à produção... Como acontece que esse é o meu disco preferido, decidi tomá-lo como ponto de partida para este.



Porque prefere I’m With Stupid?
Por esse aspecto de conter canções inteiramente diferentes umas das outras. Ou, então porque, agora, estou num estado de espírito que me leva a preferi-lo. Tal como, quando gravei The Forgotten Arm, que se organizava à volta do tema de duas personagens em fuga, foi uma questão de me sentir bem a trabalhar no interior desse modelo e de me aperceber que as diversas canções que ia escrevendo tinham uma certa unidade conceptual.

Não lhe apetece, por vezes, que, tal como aconteceu com Magnolia e Paul Thomas Anderson, as suas canções voltassem a inspirar o argumento de um filme? Pergunto-lhe isto porque, quando escutei The Forgotten Arm, fiquei com a sensação de que poderia estar a invocar tais espíritos...
É curioso porque, por acaso, esse disco era fortemente influenciado pelo primeiro filme do Paul Thomas Anderson, Hard Eight, com a Gwyneth Paltrow e o John T. Riley... não me saía da cabeça a cena em que eles estão em Reno e são obrigados a fugir num velho Cadillac. Mas claro que adoraria que o que aconteceu com Magnolia se repetisse.



Por esta altura, parece-me evidente que já existe uma entidade a que podemos chamar “uma canção de Aimee Mann”. Esquecendo, agora, os textos, diria que a sua escrita das melodias consegue atingir aquele difícil equilíbrio entre não serem terrivelmente complexas nem desgraçadamente óbvias. Trabalha muito esse aspecto?
As melodias são aquilo que mais naturalmente me chega: instintivamente, agradam-me ou não e sugerem-me a progressão harmónica que, essa, exige mais trabalho. Mas é, principalmente, sobre as palavras que tenho de me aplicar mais – entender exactamente o que pretendo dizer, como, sob que ângulo –, embora também aconteça recebê-las de um jacto único.

Qual o motivo para, neste álbum, ter abdicado quase totalmente das guitarras em favor dos teclados?
Gravámos quase integralmente ao vivo, em estúdio, e o teclista criou diversas partes com uma sonoridade tão boa que, quando ouvimos o resultado, olhámos uns para os outros e dissemos “Não parece que as guitarras eléctricas façam muita falta!”. Claro que, inicialmente, essa hipótese não tinha sido excluída, porque... é suposto que apareçam guitarras... (risos) Mas, a dois terços do final da gravação, tinha-se tornado bastante evidente que não as iríamos utilizar mesmo.

A Aimee Mann foi pioneira na forma como cortou com as editoras discográficas, criando a sua própria etiqueta e ocupando-se da distribuição. Como vê, hoje, o estado da indústria discográfica que, tal como a conhecíamos, com a partilha gratuita de ficheiros na Net, caminha para uma morte certa?
Está tudo a esboroar-se aos poucos, é verdade. Ninguém é capaz de adivinhar como isto irá acabar. Neste momento, não consigo sequer pensar sobre o assunto porque não estou a ver o que possa fazer acerca disso. É impossível obrigar as pessoas a pagar uma coisa pela qual imaginam não dever pagar nada e não me apetece fazer sermões. Se gosto da música de alguém, vou comprar o disco, mas isso sou eu. Só nos resta esperar para ver, se, algures neste processo, sobreviverá alguma forma de podermos continuar a viver da música.

(versão integral da entrevista publicada no "Actual"/"Expresso" de 18.10.08)

(2008)

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