MATÉRIA EM VIBRAÇÃO
Ryuichi Sakamoto - Heartbeat
No meu dicionário, "world" continua a significar "mundo". E "mundo", tanto quanto parece, é um conceito que não exclui continentes nem regiões mas, pelo contrário, os inclui a todos. É por isso que, a despeito da tendência para ver a "world music" como uma emanação sonora de paragens exóticas e distantes, de preferência não-europeias e não-ocidentais, a sua exacta concretização tem passado mais pelas mãos de quem entende o coração musical do planeta como um organismo único, mesmo que pulsando a ritmo diferente de acordo com as latitudes geográficas que anima.
Sempre chegado à área da pop mas nunca se deixando limitar por ela, Ryuichi Sakamoto é daqueles músicos para quem a ideia de ecletismo constitui uma segunda natureza: música é matéria em vibração e não importa a origem de que provém. Não é, decerto, um acaso que (para além da educação clássica formal) as referências fundamentais para a sua formação musical que nunca deixa de citar sejam nomes tão diversos quanto Beethoven, os Beatles, John Coltrane, António Carlos Jobim ou John Cage.
YMO - "Rydeen"
Como, há poucos meses, escrevia a "Keyboards", para ele, "Tóquio é um subúrbio de Nova Iorque, a música de dança combina-se com a herança de Debussy, o piano solista coexiste com o techno-pop e a música não é senão um meio, entre outros, de fazer cinema". Enquanto síntese seria quase perfeita se não se desse o caso de ser impossível resumir a actividade de Sakamoto em tão poucas linhas. Só em termos discográficos, uma escolha "selectiva" (muito "selectiva", acrescento eu) incluída nesse número da revista contabilizava, entre 1978 e 1992, dezassete álbuns editados. Depois, há ainda o passado com a Yellow Magic Orchestra, as composições para dança (com Molissa Fenley) e para o cinema (onde também intervém como actor), as publicações de dois livros de diálogos com os filósofos Shozo Ohmori e Yujo Takahashi (See The Sound, Hear The Time e The Long Call) e as múltiplas colaborações como executante, compositor ou produtor que vão de Hector Zazou a David Sylvian ou Virginia Astley.
Heartbeat, o álbum a solo acabado de sair, corre, pois, o sério risco de se ver afogado num dilúvio de projectos paralelos, portador do perverso efeito de empalidecer o brilho daquela que é já uma da edições marcantes de 1992. Nada seria mais injusto. Na sequência lógica da estética pancultural consagrada, em 1990, com o excelente Beauty, Heartbeat recusa a repetição de uma fórmula mas confirma a mesma visão: o mundo da música e as músicas do mundo coincidem no mesmo espaço e conjugam-se no tempo presente. É indiferente a proveniência negro-americana da batida house ou a matriz melódica japonesa de "Sayonara". Pouco conta a coabitação dos Super DJ Dimitry e Jungle DJ Towa Towa (dos Deee Lite) com Youssou N'Dour ou com "samples" de Jimi Hendrix. Não é fundamental olhar para o lugar de onde partiram David Sylvian, Marco Prince, John Lurie, Arto Lindsay, Ingrid Chavez ou Bill Frisell, cantem, toquem ou falem inglês, português, francês e japonês ou se exercitem no rap, no disco ou no swing. A todos reúne o mesmo "heartbeat", aquela pulsação cardíaca primordial que Sakamoto, em "Tainai Kaiki II", traduz para o esperanto planetário como "returning to the womb". É essa a corrente subterrânea que articula a ossatura de todo o álbum e, finalmente, reduz à impotência qualquer tentativa de o dividir em partes.
Tão "étnica" é a primeira metade (devotada à "club culture") quanto a segunda (onde as dimensões atmosférica, europeia e extra-ocidental cruzam caminhos). Satie pode dialogar com os Soul II Soul e a electrónica invadir o Islão. Nem por isso as leis básicas da acústica universal se modificam ou o vocabulário sofre torsões radicais. É tudo uma questão de identificar a raíz comum e partir daí para o ensaio das declinações locais, onde as era se confundem e as linguagens convergem na celebração das diferenças. Entre o arabismo estratosférico de "Nuages", o "eastern disco" de "Sayonara", a indeterminação geográfica de "Borum Gal", o impressionismo de "Song Lines" ou o funk minimal de "Cloud nº9", bem poderia ser a voz subliminar de Cage - que aflora em "Heartbeat (Tainai Kaiki II)" - a recitar o conceito unificador de todo o disco, que a faixa de abertura prefere entregar ao canto de Dee Dee Brave: "Break the code and read the message, speak directly to the center".
(1992)
23 October 2008
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1 comment:
Só posso dizer que adoro o Sakamoto Há muito tempo. Uma ótima dissecação desse disco. Mas bem lá no fundo está a cultura japonesa. Minimalista, obcecada pelo detalhe e ao mesmo tempo capaz de absorver outras culturas. Sakamoto é a world music, na definição precisa de mundo.
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