12 September 2008

DEVANEIOS
 
 
David Byrne & Brian Eno - Everything That Happens Will Happen Today
 
 
 
David Sheppard - On Some Faraway Beach: The Life And Times Of Brian Eno
 
A abrir o quarto capítulo da excelente biografia de Brian Eno por David Sheppard, On Some Faraway Beach, em epígrafe, descobre-se uma citação do próprio Eno, “Ter sorte é estar preparado”. Não seria difícil conduzi-la às últimas consequências e afirmar que praticamente toda a vida do mais célebre “não músico” de sempre a isso se poderia resumir. Esticando um pouco a corda, apeteceria mesmo arriscar que, digerido o livro, se conclui que a única verdadeira decisão que Eno tomou foi aos nove anos quando, após ter adquirido o seu primeiro disco – “Get a Job”, dos Silhouettes –, jurou a si mesmo o exacto oposto: “never get a job”. Compromisso que, apesar de aparente “workaholic” que exibe na parede do seu estúdio um quadro de planeamento anual de actividades densamente preenchido, cumpriu à risca, teorizando e especulando compulsivamente apenas por pura incapacidade de o evitar, entregando-se até ao esgotamento a mil e um projectos unicamente pelo prazer.
 
 
 
Mas sempre atento e preparado, por exemplo, ao mero acaso de ter ido parar à Ipswich School Of Art durante o curto espaço de tempo em que ela se converteu em incomum laboratório de experimentação estética e pedagógica. Ou no momento em que, tirando partido da hospitalização devido a um pneumotórax, possível consequência de uma maratona sexual de 36 horas – o seu devorador apetite sexual é lendário –, se apercebeu que, com os Roxy Music ou a solo, a vida “de estrada” de um ícone do rock’n’roll não era para ele. Ou, ainda, naquele outro, a 18 de Janeiro de 1975, quando – ele que nunca tirou a carta de condução – foi atropelado por um táxi e, imobilizado durante semanas, graças ao álbum de harpa que Judy Nylon lhe colocara sobre um gira-discos com uma coluna rebentada e o volume no mínimo, todas as suas intuições dispersas acerca da “ambient music” acharam o lugar exacto no puzzle mental. A mesma Judy Nylon, aliás, para quem – nas Snatch, com Patti Palladin – Eno produziu “RAF”, uma colagem sonora de batidas punk/disco e paranóia urbana de “found voices” de atentados terroristas, semente a partir da qual germinaria My Life In The Bush Of Ghosts (1981), com David Byrne, que, se não inventou o “sampling”, foi, certamente, responsável pela sua implantação definitiva como estética pop aprovada.
 
  
 
É, pois, inteiramente natural que, 27 anos passados, a notícia de Byrne e Eno – agora confortavelmente instalados como destacadas figuras dirigentes da elite-pop-que-utiliza-os-hemisférios-cerebrais – se terem voltado a encontrar para congeminar um álbum a quatro mãos tenha provocado considerável ondulação no grande charco musical contemporâneo. E mais natural ainda será que, a isso, se siga alguma consternação pelo facto de, desta vez, não lhes ficarmos a dever nenhuma nova provocação à ordem instituída mas tão só uma respeitável colecção de canções que terá como particularidades mais notórias o facto de a componente musical ser essencialmente da autoria de Eno, tendo David Byrne assegurado textos e a “arte final” sob a forma-canção, para além de se constituir como mais uma peça na revolução em curso no âmbito das relações entre músicos e indústria discográfica: primeiro disponível para “download” na Internet, só em Outubro terá publicação física em CD, numa edição especial “de luxo”.
 
  
 
Que, à excepção disso, não vêm armados de manifestos insurreccionais, deixam-no bem patente no tema-título (“Everything that happens will happen today and nothing has changed, but nothing's the same and every tomorrow could be yesterday”), sublinham-no, ironicamente, aqui e ali (“This groove is out of fashion, these beats are 20 years old”) e, de um modo geral, entregam-se a pequenos solilóquios acerca do mundo (os tempos “when we fall in love with war, when the angel fucks the whore”) e da condição humana (“Heaven knows what keeps mankind alive”), no registo musical que designam como “folk electronic gospel” mas que, excluindo as convulsões sonoras de “I Feel My Stuff” e “Poor Boy”, é somente um amável devaneio de “singalongs” finamente cinzelados. (2008)

8 comments:

Anonymous said...

"manifestos insureccionais"

Anonymous said...

No outro dia defendi a tese aqui na net que as 36 horas do Eno só podem ser ficção. É humanamente impossível. Nem o zézé camarinha...

Manuel said...

Infelizmente não tenho conhecimentos da lingua inglesa que me permitam ler e biografia do Brian Eno. Suficientes para ouvir e fruir com prazer os discos (Music for Airports ou Apollo, por exemplo) mas não para ler.

Isto para dizer que o João Lisboa poderia partir para a tradução (não seria a primeira vez que o fazia, veja-se Superstars, Andy warhol e os Velvet Underground, Assírio e Alvim, 1992) deste livro e de outros que o nosso mercado editorial esquece.

Presumo que a edição não seja apelativa comercialmente (apesar das faladas 36 horas) …enfim, paciência.

Manuel Carvalho

João Lisboa said...

"No outro dia defendi a tese aqui na net que as 36 horas do Eno só podem ser ficção. É humanamente impossível. Nem o zézé camarinha..."

Gostava de ler a tua defesa dessa tese.
Segundo o Sheppard - que, aliás, não se perde demasiado em detalhes acerca das proezas sexuais do Eno -, a maratona não terá sido exactamente "non stop" mas mais na modalidade "prova de estafetas": "bed hopping" de parceira para parceira, sendo as parceiras 6. Isto é, uma média de 6 horas com cada. Ora, imaginando que as donzelas não seriam todas igualmente apetecíveis, poderá ter passado meia hora com uma e gozado a seguir de um período refractário confortável antes da seguinte; duas horitas para essa e uma sesta pós-coital reparadora, and soi on.

Não fales do que não sabes, pá!!!

João Lisboa said...

"Isto para dizer que o João Lisboa poderia partir para a tradução (não seria a primeira vez que o fazia, veja-se Superstars, Andy warhol e os Velvet Underground, Assírio e Alvim, 1992) deste livro e de outros que o nosso mercado editorial esquece."

Pois poderia. Mas a questão é que - como as vendas deste tipo de livros acabam por ser reduzidas, caso cheguem a ser editados as traduções são apenas trabalho de escravatura e pagas como tal. Atenção que não me estou a queixar das óptimas gentes da Assírio! Mas é assim mesmo.

Anonymous said...

6?!! Isso arruina a minha tese. É toda uma série de questões epistemológicas e antropológicas novas. Vou pesquisar o Lévi-Strauss.

João Lisboa said...

"6?!! Isso arruina a minha tese."

Arruinada ou não, gostava de a ler.

"É toda uma série de questões epistemológicas e antropológicas novas. Vou pesquisar o Lévi-Strauss."

Vai dando informações.

Táxi Pluvioso said...

Mademoiselle K.

O melhor não músico é... Pete Doherty.