01 July 2008

OTHER WORLD MUSIC



Hedningarna - Kaksi!

Existem discos literalmente inclassificáveis e só temos de lhes ficar eternamente gratos por serem assim mesmo. Há bastante tempo (provavelmente, desde o fabuloso Sahara Blue, de Hector Zazou) que não passava pela experiência de escutar uma gravação para a qual todas as categorias à disposição se revelam desprovidas do menor sentido. Kaksi!, dos sueco-finlandeses Hedningarna, é o último e mais impressionante desses casos. Imaginem um colectivo de cinco músicos que se dedica à reinvenção da música tradicional da Escandinávia (só de escrever isto já estou a simplificar demais...) e que, quando entrevistado pela "Folkroots", à primeira insinuação, responde: "Say 'folk' and I think... yuk!".



Depois, considerem a informação segundo a qual, no final de cada concerto, lhes leva mais tempo a arrumar as disquetes dos computadores e os samplers do que a guardar nos estojos as sanfonas, alaúdes, hardanger fiddles, gaitas de foles, kanteles finlandeses ou percussões árabes. Finalmente, fiquem a saber que a sua interpretação de "Ful Valsen" não é, para o grupo, exactamente um momento de dança de salão mas, sim, pretexto para um incendiário tributo a Jimi Hendrix, afogado em dilúvios de alaúde distorcido por pedal wah-wah. Ou ainda que "Aivotan" congrega, no mesmo corpo musical, uma melodia canadiana, um texto retirado do Kanteletar e um desenho rítmico de polca sueca.



Confusos? Mais maravilhosamente entontecidos ficarão ainda se escutarem o resultado material dessa vertigem de sonoridades que faz da declinação estética do lema "think global, act local" algo de mil vezes mais fundamental que o respeito pelas partituras ou a destreza técnica. Por sinal, ambos existem aqui e em elevada percentagem, rebuscados nas prateleiras da Academia Sibelius e conquistados na prática de todas as músicas. Mas, entendidos e aplicados de um modo tal que, deste mergulho imenso na eternidade das tradições, explode algo de infinitamente contemporâneo, enérgico e exuberante.



Nunca antes se ouviram instrumentos de origem popular ou erudita soar desta forma, nunca antes foi tão difícil identificar com precisão o que provém de ressonâncias acústicas e aquilo que se gera nas entranhas de circuitos electrónicos, colide com as cordas, sopros e percussões e regressa ao coração das máquinas para desencadear outras associações. à superfícia, as vozes. De Sanna Kurki Suonio e Tellu Paulastu, duas finlandesas que inscrevem a memória agreste do canto de Ingamanland, na Carélia, neste remoínho de sons tão genuinamente novos como os instrumentos que Anders Stake inventa para o grupo (um exemplo: o cruzamento laboratorial de uma sanfona com um "string drum" electricamente amplificado). Na falta de categorias viáveis, resta completarmos também a nossa parte do trabalho e criarmos outras. Que tal "other world music"?

(1993)

4 comments:

menina alice said...

Os Hedningarna - suponho até que esse disco exactamente - foram das surpresas mais surpreendentes que vivi nojóvidos. Lembro-me de ter sentido o meu universo a expandir nesse momento.

João Lisboa said...

Oh yeah... e o primeiro concerto deles, em Algés, foi exactamente o que se chama memorável.

Unknown said...

Gosto muito do "Kaksi" mas eu é mais "Tra"...

Anonymous said...

Já agora, era uma boa altura para o João Lisboa relembrar o que escreveu sobre o(a)s vizinho(a)s Varttina. Por aquela altura (1992/1994) ainda não sei quem fazia a música mais excitante. Se uns foram mais revolucionários os outros foram bem mais festivos. Ambos essenciais, obviamente. P.S. Os comentários estão atrasados, mas (como diz o Manuel arco-da-velha) esta semana juntei-me ao grupo dos Faznadões...