04 June 2008

MATAR UM ÁRABE
(a propósito de Albert Camus)


No Verão de 2006, os “spin-doctors” da Casa Branca puxaram os cordelinhos necessários para que chegasse ao conhecimento público que, de férias no seu rancho do Texas, George W. Bush (a quem o mundo em geral não atribui exactamente o estatuto de intelectual) tinha escolhido como leitura O Estrangeiro, de Albert Camus. Dava jeito até porque, no ano anterior, num discurso em Bruxelas, no qual enaltecia o papel da aliança entre os EUA e a União Europeia com a finalidade de “disseminar a democracia pelo mundo”, alguém lhe havia plantado no texto uma citação de Camus onde este afirmava que “a liberdade é uma corrida de longa distância”. A manobra, porém, teve o resultado oposto ao pretendido porque, inevitavelmente, houve logo quem chamasse a atenção para a passagem do livro onde o protagonista, Mersault, mata a tiro, fria e amoralmente, um árabe. 



Um tiro que, para o texano de poucas letras, no actual clima político, fez ricochete e lhe acertou, mais uma vez, no pé. Nada, porém, que não pudesse ter sido evitado se a quadrilha de assessores de Bush fosse um bocadinho mais versada em matéria de pop britânica e conhecesse, por exemplo, a teia de equívocos urdida em torno de “Killing An Arab”, o primeiro single dos Cure, de 1978, também ele inspirado no romance de Camus: desde o primeiro instante, por mais que Robert Smith se esgotasse a explicar que a canção era apenas uma tentativa de transpor para o idioma da pop a sua leitura da obra do escritor francês e que, onde se lia “árabe” (no livro e na canção), poderia estar qualquer outra etnia ou nacionalidade, isso não impediu que, a sua primeira compilação de singles, Standing On A Beach (1986), fosse obrigada a ostentar um autocolante que alertava contra a potencial utilização para fins racistas da canção, que esta fosse excluída de Greatest Hits (2001) ou que, já no pós-11 de Setembro, em diversos festivais, Smith tivesse de alterar grotescamente o texto para “kissing an arab” ou “killing another”. Invariavelmente, a iliteracia conduz ao disparate ou à censura.

(2008)

3 comments:

Anonymous said...

"onde se lia “árabe” (no livro e na canção), poderia estar qualquer outra etnia ou nacionalidade"

Para ser rigoroso poderia estar qualquer outra pessoa ... mesmo da mesma nacionalidade ou etnia de Mersault. O "Estrangeiro" é um caso clássico de má tradução de um título já que, em francês, étranger tem também o sentido de "estranho" e, no livro, claramente é esse o sentido de "l'étranger" é, de facto, é essa a tradução feita em outras línguas, nomeadamente a inglesa -- "the stranger"). E, se eu percebi bem o livro (confesso que já o li há mto tempo), o estranho é o próprio Mersault (um misto de amoralidade e de verdade, "incompreendido" pela sociedade). nuno

João Lisboa said...

Yup.

menina alice said...

"fosse obrigada a ostentar um autocolante que alertava contra a potencial utilização para fins racistas da canção"

Que é do mais indie que se pode ostentar. E vende.