03 December 2007

CHOQUE E ASSOMBRO



Joni Mitchell - Shine




Bruce Springsteen - Magic

Nem o modelo-Blue Nile (quatro álbuns em quase vinte e cinco anos de carreira) é garantia de obra-prima indiscutível, nem os litros de suor criativo vertidos por todos os “hardest working men in rock’n’roll” denunciam uma atitude de lenhador musical que avalia o seu trabalho a peso. Cada músico e cada banda tem os seus ciclos (mais ou menos) produtivos e, independentemente das diversas circunstâncias que os poderão condicionar, não será nunca pela maior ou menor dimensão da sua discografia que assegurarão um lugar de destaque na história da música popular. Seja como for, sempre que, após alguma ausência, os vemos de regresso – muito especialmente, aqueles perante quem a memória se sente em dívida –, quase instintintivamente, saudamo-los e aguardamos o melhor.



No caso de Joni Mitchell, francamente mais do que um regresso, trata-se de uma verdadeira ressurreição: após a publicação de Travelogue, em 2002, Mitchell, por entre acusações e recriminações dirigidas contra a indústria discográfica (que classificou então como “uma fossa séptica habitada por porcos pornográficos que apenas se preocupam com os rappers e em jogar golfe”), anunciou que abandonava definitivamente a actividade musical e lançou sobre o inimigo a praga “Só desejo que vão todos pela pia abaixo!”. Talvez porque a maldição esteja em vias de se cumprir, cinco anos depois, mudou de planos mas, sem desempenhar exactamente o papel de filha pródiga, não se lançou nos braços de nenhuma editora: como Bob Dylan e Paul McCartney antes dela, o seu contrato é com a cadeia de cafés Starbucks que distribui o novo álbum, Shine.



E, para além disso, não só, em todas as entrevistas que tem concedido – nas quais, sinal aterrador dos tempos, é invariavelmente descrita, na qualidade de ave rara, como “one of the world’s last great smokers” – não desistiu de derramar bílis sobre o actual estado de coisas na música (“Tornou-se-me cada vez mais difícil ser uma figura pública. Havia aspectos do meu trabalho que eram absolutamente repugnantes. Comecei a ter pesadelos e, quando uma coisa se apodera do nosso subconsciente desse modo, é o momento de a largar. Acreditei a sério que nunca mais gravaria nenhum disco”) e no mundo (“Parte-se-me o coração perante a estupidez da minha espécie. Mas já não consigo chorar por causa disso, é como se tivesse sido vacinada, é uma dor que dura já há demasiado tempo. O Ocidente obrigou o mundo a embarcar num comboio desgovernado. Enquanto espécie, estamos no caminho da extinção”), como insiste em reivindicar para si o justo reconhecimento: “A minha música tem uma profundidade que nem sempre é reconhecida. Gosto de acordes complexos, de acordes suspensos. Segundo as regras tradicionais da harmonia, mesmo no final do século XX, não era aconselhável passar de um acorde suspenso para outro. Aparentemente, continua a preferir-se uma resolução harmónica mais convencional”. Não será, pois, motivo de espanto que Shine inclua uma colecção de canções onde todas estas preocupações se reflectem e assumem a forma de apelos e imprecações – “Shine on the Catholic Church and the prisons that it owns, shine on leadership licenced to kill, shine on dying soldiers in patriotic pain, shine on mass destruction in some God’s name” –, que o clássico “Big Yellow Taxi” seja objecto de revisão ou que o poema de Rudyard Kipling, “If” assuma o estatuto de manifesto final. O que, porém, impede a salva de palmas a este conjunto de melodias e interpretações de Joni Mitchell é a opção por uma indesculpável tonalidade geral de quase “cocktail-lounge” acerca da qual a acusação principal deverá ser dirigida ao desgraçadamente omnipresente saxofone de Bob Sheppard.

Se estamos em “mood” de ovações, voltemo-nos, então, para Bruce Springsteen. É verdade que apenas desde há dois anos – quando publicou o mui literário Devils & Dust – não tínhamos álbum de originais seu e que, mesmo assim, as óptimas Seeger Sessions do ano passado o mantiveram presente. No entanto, o que Magic assinala não é tanto o regresso de Bruce na companhia da E-Street Band (o último encontro acontecera em 2002, com o irregular The Rising) mas sim a integral recuperação do espírito primordial que, um dia, na primeira metade da década de 70, os fez cruzar caminhos:



o rock’n’roll cinemático, gigantesco e exuberante de The Wild, The Innocent And The E-Street Shuffle (1973), Born To Run (1975) ou Darkness On The Edge Of Town (1978) reencontrou o endereço do estúdio onde Magic foi gravado e o imbatível gang original de Max Weinberg, Clarence Clemons, Roy Bittan, Danny Federici, Steve Van Zandt (aliás, Silvio Dante, proprietário do acolhedor “Bada Bing”, na série Sopranos) e Garry Talent – acrescentado agora de Nils Lofgren e Patti Scialfa –, de novo possuído pelos demónios de Phil Spector, projecta as doze canções do álbum para aquela estratosfera sonora mítica de onde, apetece dizer, nunca deveriam ter saído. Em rigor, haverá de se afirmar que, se o investimento de energia se situa algures por essas coordenadas, é na atmosfera de The River (1980) que se movimentam a voz e as personagens que habitam Magic: aqui não se vive já no interior da lenda do “sonho americano”, cavalgado à desfilada pelo meio de “highways” e “turnpikes”, mas, como no duplo do início de 80, paira um céu carregado de ameaças e desencantamentos que, ainda que só raramente explícitos, têm nomes, datas e moradas: George W. Bush, Iraque, a quebra do compromisso com os “ideais fundadores” da nação americana de que fala Greil Marcus em The Shape Of Things To Come.



O piano de Roy Bittan, em “I’ll Work For Your Love”, pode evocar “Jungleland”, “Livin’ In The Future” fará pensar em “Tenth Avenue Freeze Out”, “Last To Die” começará onde “Thunder Road” acabou e “Girls In Their Summer Clothes” (“Desejei que, neste álbum, houvesse uma coisa que definisse um universo pop perfeito”, Springsteen) ou “Your Own Worst Enemy” até poderão ampliar a paleta de cores com tonalidades-Brian Wilson. Mas as palavras que escutamos dizem “Who’ll be the last to die for a mistake, whose blood will spill, whose heart will break?” e “I got a shiny saw blade, all I need is a volunteer, I’ll cut you in half, while you’re smiling ear to ear”. Roubando a terminologia ao adversário, podemos perfeitamente reconhecer sem complexos que o “shock and awe” que resulta da audição de Magic decorre muito menos de Bruce Springsteen ter iniciado uma qualquer nova etapa no seu já longo percurso mas de ter voltado a ser ele próprio (“ele próprio” no sentido mais paradigmaticamente clássico) de modo tão convincentemente vibrante. (2007)

1 comment:

Filipa Rosário said...

pois, naturalmente, sou fã dos dois. o thunder road é música mais bonita do mundo, joão. é mesmo. beijinhos da filipa (marta)