09 November 2007

DE QUE LADO SOPRA O VENTO?
(retomando a partir daqui)



Na televisão do "lobby" do hotel de Lisboa em que — de viagem entre a capital, Braga e Paris, onde há ano e meio reside — estacionou para falar sobre o novo álbum dos Mão Morta, Adolfo Macedo (aliás, Adolfo Luxúria Canibal) não pode deixar de reparar nas imagens obsessivas de um pobre país "moderno" a exibir a sua fundamental ruina, em directo de Castelo de Paiva, com um autocarro semi-submerso como metáfora tragicamente apropriada para as canções de um disco intitulado Primavera de Destroços. Não admira, por isso, que disco e conversa incidam essencialmente sobre o mal estar endémico do mundo contemporâneo e sobre essa difusa barbárie que volta a incubar novas gerações de "revolucionários" e obriga a reflectir sobre o lado de que o vento sopra.

Agora que, há ano e meio, vives fora de Portugal, isso proporciona-te uma outra perspectiva para os textos que escreves sobre (como dizia um amigo meu a propósito da história do autocarro de Castelo de Paiva) "este país de onde até os mortos emigram"?
Tenho uma imagem de Portugal que não tinha e, estando em Paris, começo a ter. Um filósofo português que vivia nos Estados Unidos e de que não recordo o nome falava de Portugal como tendo o trauma de ser pequeno e a arrogância de ser grande. Mas, de cada vez que venho a Portugal (e venho muitas vezes), tenho a sensação de que Portugal está todo virado para dentro, só fala de si mesmo, é completamente paroquial, raramente há uma perspectiva maior. O tratamento dos assuntos, como o da segurança (lá, como cá, lançado pela direita), é completamente diferente: foi pela imprensa francesa que pude saber, por exemplo, que, na Europa comunitária, Portugal e a França são os países que têm maior número de polícias por habitante, com Portugal à frente! Lá fora sente-se muito essa ideia de paróquia e compreende-se por que motivo os emigrantes estão tão distanciados de Portugal e Portugal está longe deles. Instituições como o Instituto Camões ou as embaixadas que deveriam fazer alguma coisa, não fazem nada. É chocante como Portugal vive de fachadas, de palacetes, de grandes banquetes e ambientes de fausto e depois não tem dinheiro para fazer rigorosamente nada de concreto, prático e real de apoio à cultura portuguesa.



E, por causa dessa distância, existe neste disco dos Mão Morta alguma ruptura em relação ao que vinha de trás?
Não. Este disco foi feito num espaço de três anos. O Latrina era um bocado claustrofóbico, parecia que não havia fuga. E surgiu a ideia de utilizar a "Primavera de Destroços" que era um bocado da pré-história dos Mão Morta (dos Au Au Feio Mau) como saída, com um arranjo de cordas do Zé Mário Branco. Essa oportunidade perdeu-se. Depois, há quatro textos tirados de um espectáculo de "spoken word", há experiências musicais e samplagens do Miguel Pedro que ele foi guardando. Houve um momento em que decidimos que seria um disco de canções soltas, não conceptual, virado para o subjectivismo e para uma recepção epidérmica à realidade. Há um trabalho disperso. Existe uma continuidade de escrita mas todas as composições derivam do piano ou de samplagens.

Este disco foi um pouco uma finta à ideia mais recente dos Mão Morta como autores de albuns conceptuais com o Müller e o Latrina. Nos anos 70, os álbuns conceptuais eram obrigatórios, nos anos 80 foram o anátema, e, depois disso, quem quis fazê-los, fez, e seria melhor que fossem bons. Os vossos eram muito bons. Porquê desistir agora?
Não há mal nenhum em fazer álbuns conceptuais e a melhor prova é que os fizémos e já desde o OD que era mais temático do que conceptual. O pior é o rótulo, o cliché. Havia que tentar outras formas. Se o álbum conceptual não é mau em si, porque não um álbum de canções?

No entanto, tanto no Müller como no Latrina, o conceito que lhes estava por trás funcionava como uma espécie de lupa que focava muito mais precisamente toda aquela vossa violência, ira e agressividade, definindo um inimigo nítido em relação ao qual as vossas balas se dirigiam. Neste disco, parece que os contornos da imagem desse "inimigo" voltaram a ficar um bocado difusos...
Não estou de acordo. Nos primeiros álbuns (e aí concordo) não havia uma definição clara do inimigo porque, se o fizéssemos nos anos 80, nessa época de pujança e de vanglória do capitalismo, seríamos catalogados e postos à margem. Qualquer pau na engrenagem seria um pau que se partia a menos que fosse um pau subtil. A partir de certo momento sentimos que as circunstâncias tinham mudado — quando começámos a trabalhar no Latrina ainda antes do Müller —, com o aparecimento de vários movimentos de contestação da globalização liberal e do mercado sem freio em todo o mundo. Não nos enganámos acerca do lado de onde soprava o vento e, finalmente, o vento soprava a nosso favor. Pudemos assumir e definir mais claramente o inimigo no Latrina do que no Müller. Agora podemos voltar à recepção epidérmica a esta realidade, tornar a mostrá-la na sua crueza mas de uma forma mais subjectiva em vez de ser do ponto de vista de quem, acima dela, teoriza.



Mesmo com o "alibi" Situacionista de permeio, o que te impede de passar a uma qualquer forma de militância política activa?
Não me interessa nada. Já fui convidado e disse não peremptoriamente e sem pestanejar. Não direi que a desprezo mas a actividade política militante não me dá gozo nenhum. É uma questão mais de sensiblidade, de irritação, de não estar bem comigo próprio se não disser certas coisas do que um querer criar um movimento político de contestação, selvagem ou não. Esse movimento cria-se por si próprio, está a crescer. Eu sinto-o, em França, sinto-o mais do que cá. Eu digo isto com agrado: volta a haver putos de dezasseis anos marxistas-leninistas! Não acho piada nenhuma ao Lenine mas acho muita graça a isso. E não estão numa de 68, vivem no mundo actual, aplicam a teoria leninista à Constituição do Estado e aplicam sobretudo a análise marxista à interpretação do quotidiano e do momento presente. Não ficam fechados nos clichés dos pais ou dos avós. As pessoas têm a mania que os franceses são todos contestários mas a câmara de Paris era há 110 anos de direita e deixou de o ser.

Mas, pegando por aí, quando o Marx dizia que chega de explicar o mundo o que é preciso é transformá-lo, nos Mão Morta há uma exaustiva "explicação" e imprecação contra a imundice do mundo e da espécie humana que fica sempre aquém da "acção revolucionária"...
A "explicação do mundo" só fizémos no Latrina. O que apresentamos é um espelho do estado de barbárie do mundo. Nem sequer moralizamos. Se eu acho piada a haver putos de dezasseis anos marxistas-leninistas é porque, de repente, as coisas não são tão claras e límpidas como nos quiseram fazer crer há meia dúzia de anos. Não há uma vitória definitiva de uma ideologia única liberal e do capitalismo selvagem. As últimas badaladas ainda não soaram. (2001)

4 comments:

Anonymous said...
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Anonymous said...

Imperdível crónica de Isabel Stilwell sobre o massacra na Finlândia:

«Não usava brincos na orelha, era um caucasiano puro, o cabelo loiro com gel, como o de qualquer outro adolescente de 18 anos. Estava longe do protótipo do lobo mau, não tinha piercings no nariz, nem tranças compridas e oleosas. Não usava sequer um boné à americana, em sinal de revolta contra o sistema.»

Anonymous said...

Parece-me óbvio que o Adolfo não pode ser Macedo. A estadia em Paris é obrigatória.

Anonymous said...

... sou apaixonadíssima por este Primavera de Destroços...

m.