O BRASIL PRECISA DE ODIAR-SE MUITO *
Caetano Veloso poderá ter gravado um disco de rock – Cê – mas, não só isso lhe parece uma muito natural continuidade do que, musicalmente, faz desde 1966, como não lhe obscurece a visão daquilo que, quarenta anos depois, não desiste de perseguir: a “originalidade fatal” do Brasil, experiência humana singular no Sul da América.
Quando fazia uma pesquisa na Internet para preparar esta entrevista, surpreendeu-me bastante ter descoberto em diversos sites de língua inglesa que habitualmente se ocupam de pop/rock, bastantes críticas e referências ao seu último álbum, Cê. Sentiu isso como uma coisa normal ou também foi uma surpresa?
Acho interessante dizer-me isso mas não posso dizer que seja uma surpresa total, embora eu nunca veja essas coisas. Mas, uma vez, um amigo enviou-me uns links de sites norte-americanos com comentários sobre o Noites do Norte que, entre outras coisas, me instigaram a fazer o Cê. Elogiavam muito o Noites do Norte e o Livro mas todos esses americanos queixavam-se muito da música “Rock’n’Raul” dizendo que era rock mas não era rock e que eu não cantava como um cantor de rock… o que me espicaçou para fazer mesmo esse disco como um desafio.
E, no entanto, nos casos que vi, o álbum era abordado de uma forma elogiosa mas inteiramente normal, como se se tratasse de uma coisa habitual em si…
Acho que está certo. Não vejo muita razão para não ser assim.
Também achei curiosa a diferente percepção que ouvidos ingleses e americanos podem ter da sua música: vi associações e comparações da sua música com a de Dylan, Chuck Berry, David Bowie e até da PJ Harvey…
Interessante. Que coisa, isso… A mim, não me ocorreria muito (risos). Isso sim, acho surpreendente.
E, no entanto, o seu envolvimento com a linguagem do rock não é uma coisa de agora…
A minha ligação com o rock data de 1966! E nunca a abandonei. Mas mesmo quando não é, é… Se se ouvir algumas faixas dos Beatles (“Long And Winding Road”, por exemplo), apetece perguntar “mas porque é que isto é rock?” Somente porque foi feito por um grupo de rock! Hoje, classifica-se os Beatles como pop porque não os querem no purismo do rock. Acho isso uma tolice, um aristocratismo do rock, cuja força veio do facto de, na origem, ter sido bicho comercial de baixo nível, primário, canção simples para as massas jovens. E isso revelou uma grande força histórica, uma grande energia. E é curioso que, hoje em dia, os amantes do rock sejam os mais aristocratizantes e puristas, que classifiquem o resto, de modo pejorativo, como “pop” ou “adulto contemporâneo”.
Era a isso que se referia quando, no texto que publicou quando lançou o disco, falava de “gravar um disco, marcando uma posição na discussão crítica do rock”?
Tem muito a ver com isso, sim. Tem algo disso no disco e não podia deixar de ter. Fizemos um trabalho que tem um apuro em relação ao som, desde a emissão do som do Pedro como guitarrista ou do Marcello como baterista, até à captação do som como o Moreno a dirigiu dentro do estúdio, há uma nitidez que, isso sim, é inédito na minha carreira.
É curioso ter falado dessa preocupação em relação ao som porque o que lhe ia perguntar a seguir tem a ver com uma diferença de ponto de vista em relação à linguagem de outro músico de rock – o Lou Reed – que partilha consigo esse cuidado com o som: sobre os textos de algumas canções do Cê, o Caetano afirmou “os meus discos têm as gírias da época. Sinto a língua viva, tem um frescor. Serei sempre aquele tipo de velhinho que fala as gírias dos jovens”. O Lou Reed diz exactamente o oposto: procura afastar-se da linguagem “da moda”, da gíria “de época”, para que as canções, sejam de que década forem, nunca se deixem marcar por isso.
Ele, então, tem uma vocação clássica. E eu sou mais romântico nesse ponto. (risos) Mas ele tem, de facto, toda essa preocupação e altos conseguimentos em relação ao som a começar pelo próprio timbre da voz dele. Acho uma coisa maravilhosa, é uma voz penetrante, soa bem no meio de qualquer barulho dos outros instrumentos, impõe-se no meio de tudo, não é transparente. A minha voz é muito transparente, muito vulnerável aos outros sons. Eu conheço-o, aliás. Ele foi ver os concertos do Livro e de Noites do Norte e gostou muito. Veio ter comigo e estivemos juntos por duas vezes. Eu já conhecia a Laurie Anderson, foi ela que o levou aos concertos, e ele ficou muito surpreendido e veio falar comigo de uma maneira muito entusiasmada. No Cê, conseguimos, tanto no disco como, particularmente nos concertos em que a banda é mais potente, que a minha voz soe bem, sem esforço. Isso, curiosamente, tem a ver com o Lou Reed, tanto assim que ele é homenageado no concerto com a introdução de “Não Me Arrependo”.
Continua a ser de opinião que “há canções demais neste mundo”?
Sem dúvida. Em número excessivo. E excesso não é necessariamente uma coisa boa. Há canções demais no sentido em que são muitos tipos de canções produzidas aos borbotões por um número muito grande de pessoas, ao longo dos anos, muitos magotes de discos. É um pouco atordoante e, às vezes, parece que tudo pode ficar irrelevante. Há um desejo de um número muito grande de pessoas de se exprimirem publicamente. Estive a ler um texto muito interessante de um italiano em que ele dizia que não vai sobrar ninguém para ver televisão porque está toda a gente na televisão!... (risos) Não é que eu tenha ciúme, não quero fazer parte de uma minoria privilegiada. Simplesmente constato que há canções demais. Eu próprio tenho desejo de fazer canções e, às vezes, digo “mas para quê?...”
Sobre as suas canções, o Caetano disse uma frase que me intrigou: “Orgulho-me, o que é diferente de gosto, de ‘Tropicália’, “Terra”, “Haiti”, “Baby”, “Fora de Ordem”…” O que significa exactamente este “orgulho-me, o que é diferente de gosto”?
Eu não preciso necessariamente de gostar da canção “Tropicália” como canção para reconhecer que ela tem um valor histórico do qual me posso orgulhar. Há uma diferença subtil – mas não tão subtil assim – entre o que é agradável e o que nos faz reconhecer a sua importância histórica, independentemente de você gostar de fruí-la ou não.
Ainda sobre o Cê, também gostava que me explicasse um pouco melhor o que pretendia dizer quando declarou “o disco livra-me um pouco de mim mesmo para que me aproxime mais de quem sou. Isso é uma formula que funciona para a gente, para os países, para tudo. No livro Verdade Tropical, eu já disse que o Brasil precisava ser o mais diferente de si mesmo para se poder encontrar”.
O Brasil representa fatalmente uma promessa de alguma coisa original e que possa vir a ser interessante para a vida humana. Por isso, tem sido visto como o país do futuro, como um lugar de grandes esperanças. Mas, ao mesmo tempo, é o terceiro país do mundo com a pior distribuição de riqueza. A violência aqui é enorme embora, se vier passear ao Brasil, vá dizer “que gente amável, que gente cordata”. E, no entanto, a violência por parte dos donos do tráfico nas favelas, da polícia em relação aos criminosos a sério, como esses que são opressores, mas também em relação aos pequenos criminosos e mesmo aos que nem criminosos são, a violência da vida quotidiana no Brasil é enorme. Então, o Brasil precisa de se distanciar o máximo possível de si. Não estou apenas a dizer que o Brasil tem de superar as coisas que tem de ruim para se tornar um lugar bom. Isso seria uma observação acaciana. O que eu digo é que o Brasil precisa muito de lutar contra si mesmo e ficar muito diferente do que é para chegar a ser o que, de facto, é. Aquilo para que tem vocação, as potencialidades que não vê realizadas. Isso acontece também com as pessoas. Você tem que se livrar de muitas das definições que, socialmente, construiu ou deixou construir em torno de si, para ser quem, de facto, é. Acho que o Brasil precisa de desprezar-se muito, odiar-se muito, lutar muito contra muitas características que são suas e, aparentemente, definidoras do seu carácter, para que encontre o seu verdadeiro carácter. Porque o país tem, de facto, essa tal amabilidade e doçura, uma amálgama racial que é um jogo intrincado e complexo como em nenhum outro país do mundo. E nós falamos português, e é um país de emoções continentais, no Sul, na América. São muitos factores que apontam para uma originalidade fatal. Aquelas coisas que o Stefan Zweig viu aqui de docura mediterrânica levada às últimas consequências e em melhor estado do que na Europa não são tolices que ridicularizam a inteligência de Zweig. São observações reais, são a descrição de uma experiência diante de uma realidade especial. É essa especialidade que se deverá traduzir no nosso dever de fazer com que isso se afirme. Mas o que aparecerá sera algo que só o Brasil pode ser.
Será abusivo relacionar-se isso com o que – agora só no terreno da música popular – pensa acerca do “tom demasiado favelizante” que o hip-hop brasileiro estaria a adquirir, numa attitude demasiado mimética do seu equivalente norte-americano?
Não é abusivo, é pertinente. Isso realmente acontece e é perigoso. E digo isso sem problemas porque sou um dos admiradores do rap americano e do facto de ele ter presença noutros países do mundo e que tenha a importância que tem no Brasil. A forma de ver as questões raciais que vieram no bojo dessa cultura hip-hop (e que, na verdade, antecederam a sua aparição na cultura brasileira) modificou-se. Estávamos habituados a ser “colourblind”, acostumados a acreditar que somos uma democracia racial e que somos todos miscigenados. E ainda hoje acreditamos que, em larga medida, todo o brasileiro tem mistura de raças. O brasileiro, quando se sente brasileiro, não se sente branco. Se isso serviu para que se perpetuassem muitas estruturas opressivas, não deixa de ser o objectivo que é almejado pelas sociedades humanas: chegar a ser “colourblind”, chegar a achar que todos somos racialmente misturados. O Brasil já tem essa experiência – mesmo que, em grande parte, tenha sido mitológica, mesmo que a opressão com uma linha racial nitidamente visível tenha permanecido até agora – como um tesouro guardado. Essas formas de ver americanas, estatísticas e com uma linha racial demarcada, servem para que nós fiquemos diferentes de nós mesmos para reencontrar essa coisa essencial, mais adiante e num nível mais elevado.
* (director's cut)
(2007)
12 October 2007
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