10 July 2007

PARA A VIDA INTEIRA



Como Sempre... Como Dantes é o primeiro álbum registado ao vivo por Camané. É duplo e inclui gravações de concertos em Portugal e no estrangeiro, sendo o segundo disco inteiramente dedicado a uma apresentação na "Taverna do Embuçado". E, ainda que sem ter recebido o reconhecimento nacional e internacional que outros já tiveram, é a prova definitiva de que Camané é, indiscutivelmente, a mais assombrosa voz do fado contemporâneo.

O que há de especialmente diferente para ti entre gravar em estúdio e cantar ao vivo?
Hoje em dia, sinto-me bastante bem em estúdio mas são coisas completamente diferentes, têm um gosto diferente. São ambas coisas muito reais mas senti que agora, tinha necessidade de publicar um disco ao vivo assim, diferente do habitual.

Apercebeste-te de formas distintas de apreciar o teu trabalho em Portugal e lá fora?
Para mim, são uma responsabilidade e uma tensão diferentes. Há um lado mais complacente e descontraído cá. Lá fora, como as pessoas não compreendem a língua, há que passar a emoção, sentir as coisas mais intensamente. O pensamento é sempre o mesmo: entregar as canções da forma mais simples possível. Mas cá é mais intimista, é como tentar transmitir uma mensagem, dar um recado o mais baixinho possível.

A escolha de reportório do "Embuçado" — ainda que já não precises de o fazer — será uma forma de demonstrar que também não tens problemas em lidar com o fado mais tradicional?
Eu, realmente, não tenho necessidade de demonstrar isso: cresci no meio do fado, interiorizei aquela música toda. Quando tinha dez anos, o meu pai dava-me a primeira frase de um fado tradicional e eu mandava-o calar porque queria cantar o resto sozinho (risos). Sabia-os todos. Nessa altura, havia aqueles poetas populares nas colectividades que escreviam quadras, sextilhas, quintilhas para mim acerca de temas como a escola, o pai, a mãe, e eu colocava aquilo nos fados tradicionais. No "Embuçado", como a casa fazia quarenta anos, decidi optar por um reportório mais tradicional. Mas sem pretender provar coisa nenhuma.



Sendo o habitat natural do fado as casas de fado, não te sentes como uma planta transplantada para um vaso quando tens de cantar num palco como o do CCB?
O meio onde hoje me sinto melhor é aquele em que são criadas as condições para eu fazer o melhor possível. As casas de fado podem ser muito boas ou muito más. Depende dos músicos, depende do público. Para fazer crescer o meu trabalho, já desde há muitos anos, prefiro os palcos. Eu acho que não existe habitat natural do fado. O fado é uma música que vive da palavra, do ambiente, da entrega, da empatia entre o público e quem canta. Actualmente, isso é muito mais fácil acontecer num palco do que numa casa de fados.

Mas, no ambiente mais "recatado" de uma casa de fados, não é mais fácil passar despercebida uma entrada falhada, um engano qualquer, do que num palco, exposto perante milhares de pessoas?
Claro que é uma pressão maior. Mas, com o tempo, as coisas também vão correndo bem. Naturalmente, tenho sempre imenso medo que possam correr mal. No entanto, quando começo a cantar, esqueço-o logo, ultrapasso-o, saio um bocado de mim e tenho um prazer enorme.

Sentes que, quando cantas na Holanda, em França ou em Espanha já existe um conhecimento que leva o público a saber apreciar o que deve ser apreciado no fado ou ainda lhes parece uma música relativamente nova?
Não é como nós em relação ao flamenco que é muito mais ouvido fora de Espanha. Relativamente ao fado, ainda está a haver uma descoberta. Mas já não é também como nos primeiros tempos em que eu fui cantar fora de Portugal em que ninguém nunca tinha ouvido falar em fado. Embora ainda haja muita gente a ouvir pela primeira vez.



Quando gravaste o primeiro disco há cerca de dez anos, tanto em Portugal como no estrangeiro, a popularidade do fado estava muito longe de ser o que é agora. Como é que vês a situação actual em que quase se pode dizer que o fado "está na moda"?
Lembro-me perfeitamente que, quando ia apanhar o comboio para ir para as casas de fado à noite, toda a gente gozava comigo por eu ir cantar o fado. Era uma coisa "esquisita". Nas primeiras entrevistas, quase sentia vergonha por confessar a minha admiração pelo Marceneiro, um homem de oitenta e tal anos... E a verdade é que, naquilo que eu faço está lá ele. Mas eu fui continuando e accreditando no fado como ele é. Na altura em que comecei, dos mais novos, só havia eu, a Mísia, o Paulo Bragança e o José da Câmara. E as coisas foram acontecendo. Sempre achei que o fado tinha de estar ao lado das outras músicas. Por estranho que pareça, penso que a morte da Amália e a repercussão que isso teve foi importante para a difusão do fado. Agora, eu andei muitos anos a puxar a carroça. O meu percurso foi muito diferente dos fadistas desta geração mais recente. Mas o meu sonho não tem a ver com nenhum tipo de projecção, só quero poder continuar a cantar, a fazer o que gosto. Isto é para a vida inteira.

Mas, ainda que não te vejas em competição com ninguém, não sentes que, nesta altura, já merecias, dentro e fora de Portugal, o reconhecimento e as distinções que outros muito mais rapidamente conseguiram, se calhar, através de uma atitude muito menos austera do que a tua?
Para mim, no cantar o fado, tem de haver um lado de autenticidade e de verdade que é uma mais valia. Eu sei qual é o meu caminho, não estou no meio de nenhuma guerra, o tempo é que vai permitindo que eu faça as coisas que tenho de fazer. E isso, de certeza, não vai influenciar de forma negativa a minha carreira, só me vai fazer bem. Isto é como andar de avião: não se conhece o piloto, temos de confiar e de nos deixar ir. (2003)

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