22 June 2007

UM POUCO MAIS DE "RELATIVISMO CULTURAL", ENTÃO...



I - Ryuichi Sakamoto é japonês, escreve e executa música para o cinema, grava álbuns de pop híbrida e heterogénea, gosta de Debussy, dos Beatles, Beethoven e João Gilberto. Verdadeiramente interessante é a espontaneidade desse cosmopolitismo musical: "Fundir ou combinar idiomas musicais diferentes não é um problema. Refiro-me a eles simplesmente porque me agradam. Não é um objectivo, um fim em si mesmo. Fechar-me num único género, a longo prazo, deveria ser bastante aborrecido... Não era capaz. Gosto de vários estilos porque gosto da música em geral e ela comporta diversos, da música antiga à contemporânea, da África ao Japão, através do tempo e do espaço".



Curiosamente, foi também ele que, há anos, observou, distanciando-se do lugar comum da música como "linguagem universal": "Se compararmos as escalas e modos ocidentais com os árabes, é inevitável verificarmos que estes últimos são muito mais ricos e complexos. Pelo que é perfeitamente natural que um público árabe possa achar um concerto de Mozart absolutamente banal e desinteressante". Devemos, então, lamber as feridas de um complexo de inferioridade cultural ou considerar essa atitude como uma incompreensível manifestação de etnocentrismo, desta vez, em sentido inverso ao habitual?


II - É virtualmente impossível demonstrar a superioridade da música de Beethoven sobre a de Quim Barreiros ou da de Miles Davis sobre as Spice Girls. Pode afirmar-se, decerto, que uma possui um grau muito superior de complexidade em relação à outra mas, nesse caso, também não seria difícil provar que, do ponto de vista harmónico, a construção de uma peça de Mozart assenta sobre um leque muito mais elevado de possibilidades do que outra do Renascimento ou que a ambiguidade tonal de Wagner, Debussy ou Alban Berg nos fazem olhar para a Flauta Mágica como um mero exercício cromático a preto e branco.



Sob uma perspectiva estritamente técnico-musical, uma canção popular medieval — que, sem dúvida, tem o seu lugar cativo em quaisquer jornadas de música antiga — ou uma jig tradicional irlandesa são em tudo comparáveis (e, se calhar, em alguns casos, até "inferiores"...) a qualquer êxito de Ágata ou Emanuel cujos textos, aliás, estão rigorosamente ao mesmo nível dos dos libretos de 90% das óperas românticas — puro material de telenovela venezuelana — com entrada garantida nos respeitáveis salões do S. Carlos.



E um "canto de aboio" da Beira Alta, religiosamente recolhido e preservado por Michel Giacometti, não será francamente menos "complexo" do que o "Maravilhoso Coração", de Marco Paulo, que, já agora, deu bastante mais trabalho a compôr do que os 4'33" de John Cage? Também aqui, naturalmente, estamos em presença de tribos (culturais, sociais, artísticas) e dos seus gostos e tiques que se excluem e hostilizam em nome de valores que, nenhuma delas, se chamada a defendê-los, seria capaz de o fazer com aquilo a que chamaríamos "rigor científico".



Mas quem conseguirá convencer um devoto de Verdi ou de Puccini que a "Mãe Solteira" de Ágata comunga exactamente do mesmo tipo de emoções que o fazem a ele levitar? Qual o critério, então? Não me ocorre nada de mais profundo ou sofisticado do que o puro gosto individual, inevitavelmente subjectivo e culturalmente condicionado. (2007)

5 comments:

Anonymous said...

Grande risada! Completamente de acordo. Eu às vezes digo, e sem qualquer intenção pejorativa, que o Antony é o Tony Carreira dos intelectuais, até têm o mesmo nome...Achei piada a comparação de certas óperas com as telenovelas venezuelanas, o Rui Vieira Nery diz exactamente o mesmo.

(tens uma gralha na label relativismo cultural)

Anonymous said...

«o "Maravilhoso Coração", de Marco Paulo, que, já agora, deu bastante mais trabalho a compôr do que os 4'33" de John Cage» ahahaha!

João Lisboa said...

Gralha abatida em pleno voo.

Ana Cristina Leonardo said...

Quem nunca largou um suspiro ao som de uma pirosada que atire com o primeiro vinil

Anonymous said...

Texto magnífico, mas não sei se estou completamente de acordo. É que essa história do relativismo, seja cultural ou de outra «treta» qualquer tb serve para desculpar muita coisa. E já agora, meio a sério e meio a brincar, espero que o João Lisboa não coleccione em sua casa a discografia (indispensável?) da Ágata!. Concordo plenamente é com a sua última frase, que, brilhantemente, resume e explica atitude que devemos ter perante a música de que gostamos e o respeito pela música dos outros (embora um bocadinho de veneno tb não faça mal...)