WHERE ANGELS FEAR TO TREAD
Buffalo 66 - Vários (BSO do filme realizado por Vincent Gallo)
Há poucas coisas tão intrinsecamente perfeitas como aqueles raros momentos de cinema em que imagens e banda sonora se articulam (deixem-me ser pretensioso) numa pura manifestação epifânica. Em Buffalo 66, há, pelo menos, dois, o que, convenhamos, não é propriamente a norma daquilo que se observa nos ecrãs. No primeiro, Ben Gazzara, em "playback" tocado pela mão de Deus no momento em que Ele caligrafava um sublime palimpsesto visual sobre a voz de Vincent Gallo Sr. possuida pela assombração apaixonada de "Fools Rush In" (o lugar "where angels fear to tread"), converte a já samaritana Layla/Wendy Balsam/Christina Ricci ao supremo princípio da submissão perante o amor. No outro, é ela mesma que, quando a lua a ilumina através da noite que, inesperadamente, desce sobre um salão de "bowling", ensaia uma "tap dance" metafísica em torno do cenário musical de "Moonchild", dos King Crimson.
Ben Gazzara/Jimmy é suburbano, pai, putativo sogro, triste, desgraçado e oleoso. Christina/Wendy fica muito longe de corresponder às medidas oficiais das sereias do desejo. Mas, tanto um como o outro, demonstram sem remissão os "mysterious ways" de acesso ao divino.
De Buffalo 66, foram estes os dois instantes que, ao mesmo tempo, os meus olhos e os meus ouvidos guardaram para sempre. Depois, há também o inominável "Heart Of Sunrise", dos Yes, transformado em alucinação de pesadelo para "sleazy strip joint" à beira do golpe final. Nunca me ocorreria essa associação. O que só comprova que Vincent Gallo (tal como acontece na imaterial transfiguração do pirosíssimo "Moonchild") vê muito mais longe do que a maioria de nós.
Quanto ao resto, o CD com a banda sonora do filme (essencialmente da responsabilidade do próprio Vincent Gallo — músico nos Plastics e, depois, com Jean Michel Basquiat nos Gray, pintor, vendedor de guitarras em Long Island, modelo de Avedon e Yamamoto, actor em dezassete filmes, primeiro B-Boy branco na "posse" NY Breakers, produtor de televisão, vencedor de 88 troféus em motos fórmula 2, proprietário de uma colecção de quinze mil discos, sete mil filmes e de um potencial museu de aparelhagens de alta fidelidade) assegura-me que aqueles sons estavam lá. Confesso que não os escutei quando vi Buffalo 66. O que, muito provavelmente, é um sério elogio para a banda sonora "invisível" de uma história em que as personagens jogam ao toca-e-foge com as emoções e com o pavor de as sentir e, nesse labirinto, quase todas se perdem e (acreditemos na ilusão) apenas duas se encontram. Ouve-se o disco apenas porque se viu o filme e, porque se viu o filme, o disco tem obrigatoriamente de ser ouvido. (1999)
12 May 2007
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1 comment:
Que grande Gallo. Muito bom.
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