A MIÚDA COM AS ARANHAS NOS BOLSOS
Björk Gudmundsdóttir. Björk – que deverá ser correctamente pronunciado “Bjirk” (como “jerk”, explica ela) –, “Beorc” em inglês arcaico, “Birch” em inglês actual, “Bhurga” em sânscrito. Em português, “vidoeiro” ou “bétula”, árvore sagrada dos antigos povos europeus. Gudmundsdóttir, “filha de Gudmundur” (aliás, Gudmundur Gunnarsson, presidente do sindicato dos electricistas da Islândia e figura de relevo nacional, ainda há dois anos em destaque devido a declarações acerca da violação dos direitos dos trabalhadores na construção da barragem de Kárahnúkar) e de Hildur Rúna Hauksdóttir (activista ecológica que, em 2002, entrou em greve da fome como forma de protesto contra a construção da mesma barragem – no local onde o videoclip de “Joga” foi filmado –, alimentando-se apenas de um tónico homeopático e chá de ervas islandesas). E, segundo uma lenda apócrifa que chegou a circular pela Internet, descendente directa do primeiro rei da Noruega, Harald Fairhair, e da favorita das suas sete esposas, Snaefrid Swasisdóttir.
O género de personagem que, acerca da sua condição de “pop star”, declara sem problemas: “No outro dia, fui ao ginecologista e, enquanto ele me introduzia todos aqueles intrumentos, contei-lhe que ia partir em digressão pela Ásia. Aí, ele começou a oferecer-me brochuras dos melhores hotéis da Malásia. Naquela posição ridícula, dei comigo a pensar: quem é que tem a profissão mais estranha, ele ou eu?”. Ou que, muito espontaneamente, confessa que o seu grande sonho é “viver sozinha numa pequena ilha com um barco e um farol, no interior do qual existiria um enorme orgão de tubos que, à meia-noite, levaria para a praia para tocar” (na actual tournée de Volta, parcialmente e por interposto intérprete, o sonho deverá concretizar-se na pessoa de um velho amigo de Björk, chinês-islandês – sim, isso mesmo – que “entre canções, de casaca, executará num orgão de tubos diversas peças bastante dramáticas e virtuosísticas”) e arruma expeditamente a questão da sua irrequietude estilística explicando que “Os estilos não são nada, usam-se e despem-se como a roupa. Exactamente como acontece com a comida: come-se uma maçã de manhã, uma galinha ‘vindaloo’ ao almoço e, à noite, bebe-se um whisky. É para isso que servem. São para toda a gente e não pertencem a ninguém. Divertimo-nos com eles e isso basta”.
Isto é, tudo junto, a receita acabada para que – num universo pop muito mais conservador do que ele próprio gostaria de aparentar – ao nome de Björk apareça, invariavelmente, agarrado o adjectivo “excêntrica”. Mas se, no início, em 1988, com os Sugarcubes (e, posteriormente, a solo, em Debut, Post e Homogenic), essa “excentricidade” ainda podia constituir um factor susceptível de lubrificar as rodinhas da indústria discográfica e alimentar o vampirismo dos media, a partir do momento em que de álbum para álbum – e nas múltiplas e, frequentemente, irreconhecíveis metamorfoses que, em palco, as canções sofriam –, Björk foi sistematicamente excluindo a repetição de fórmulas e, assim, dificultando severamente as suas hipóteses de identificação “estabilizada” pelo público, “excêntrica” deixou de ser um qualificativo condescendentemente amável para se tornar um fardo pouco agradável de carregar.
A rotina da máquina de detecção e promoção da coisa pop consegue lidar satisfatoriamente com uma história de boémios anarquistas islandeses adolescentes que, da conspiração estético-política no bar do Hotel Borg de Reikjavik, do dia para a noite, trepam ao topo das tabelas de venda internacionais. Até tem unhas para tirar partido disso e para, num país com uma escola de música para cada 3 500 habitantes, inventar rapidamente uma “marca Islândia” (“Olá! Sou uma Viking! Chamo-me Björk! Um amigo meu costuma dizer que, quando os executivos das editoras vêm à Islândia, perguntam às bandas se acreditam em elfos. Quem responder ‘sim’, assina contrato”) e pô-la a facturar: Sigur Rós, Múm, Gus Gus, Benni Hemm Hemm e uns quantos outros aproveitaram bem esse trampolim e sobreviveram razoavelmente à avalanche de metáforas glaciares-paisagísticas com que os quiseram submergir.
Mas, quando a diminuta criatura nórdica perde a compostura estética mínima capaz de ser digerida pelo “mainstream”, cita reverentemente Stockhausen (“O modo como ele vê a música é exactamente igual ao meu. Frequentei escolas de música durante dez anos e aborreci-me de morte com Beethoven, Bach e Mozart. Não consigo ver a mais pequena justificação para que eles tenham de ser introduzidos à força na nossa vida de hoje com a qual nada têm a ver. Claro que os sentimentos ‘clássicos’ permanecem: a fúria, a alegria, a tristeza. Mas bastava-nos entrar em contacto com a música deles uma vez por ano para compreendermos que também há trezentos anos existiam pessoas que partilhavam as emoções que hoje sentimos. Temos de seguir em frente, temos responsabilidades para com o presente. Abusa-se imenso do escapismo em direcção ao passado. E a música de Stockhausen foca isto tudo com muita nitidez”), investe pelos territórios da electrónica experimental, das diversas variantes extremas da “dance music” e da composição contemporânea, recorre a corais femininos da Gronelândia recrutados através de um anúncio afixado no supermercado, a “throat singers” Inuit e a “human beatboxers”, não se deverá chocar demasiado ao ver-se mais ou menos delicadamente removida para a região demarcada das margens “vanguardistas”, único lugar onde os seres “excêntricos” e “exóticos” como ela encontram abrigo.
Uma coisa é escarrapachar nos jornais as coloridas histórias da infância vivida em comuna hippie ou da iniciação juvenil anarco-punk a bordo da vertigem dos Kukl, Tappi Tikarrass e do colectivo artístico surrealista Bad Taste; outra, bem diferente, é, já passada a barreira dos quarenta anos, publicar álbuns como Vespertine, Medúlla ou Drawing Restraint 9, rodear-se de gente como Zeena Parkins, Matmos, Mike Patton, Robert Wyatt, John Tavener e o companheiro, Matthew Barney, musicar textos de e.e. cummings ou mesmo, após ter ganho o prémio de melhor actriz, em Cannes, com Dancer In The Dark, de Lars Von Trier, ter afirmado que nunca mais repetiria a experiência e que se dava francamente mal com pessoas como o realizador dinamarquês: “O mais importante para mim foi ter feito parte da geração punk que moldou a minha personalidade. Tudo girava à volta da ideia de que ninguém tem que dizer a ninguém aquilo que deve fazer. Daí que uma das coisas que sempre me entusiasmou foi ser metade de uma equipa de produção em que nunca seja sequer necessário discutir quem controla quem e que atribui a todos os parceiros a máxima liberdade. Quando fui apresentada ao Lars e ao grupo de pessoas com que ele já trabalha há vinte anos, senti que ele se preparava para desempenhar o papel de Napoleão Bonaparte e me reservava o lugar de Pipi das Meias Altas! Como se eu tivesse de iniciar uma luta pelos direitos humanos!... Se calhar, isso também terá a ver com o facto de eu vir da Islândia, um país onde os taxistas conversam na rua com o Presidente da República e que foi uma colónia dinamarquesa durante seiscentos anos... A aversão visceral ao poder e à arrogância é um reflexo instintivo nos países que foram oprimidos durante muito tempo. Na Islândia, nunca tivemos exército e a razão não poderia ser mais simples: nunca conseguiríamos sequer marchar juntos!...".
Claro que Björk, sendo Björk, nunca deixa de assegurar uma quota de visibilidade razoável que, por exemplo, lhe permite continuar a ser convidada para acontecimentos como a cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos de Atenas ou gerir (não sem ausência de trepidação...) a participação de um produtor como Timbaland em três temas de Volta. Mas, hoje, navega, sem dúvida, muito menos à vista da costa pop do que no tempo em que, Nellee Hooper ou Howie B a assessoravam no trabalho de cartografia – apesar de, numa entrevista a David Toop, quando interrogada acerca da medida da contribuição dos seus diversos colaboradores, contou como Hooper a terá iniciado no exercício criativo de a conduzir, de olhos vendados, para uma praia ou uma gruta e aí lhe pedir para cantar enquanto ele a gravava em DAT: "Tratava-se de perder o medo de entrar em território desconhecido". Nada, porém que a incomode demasiado: “É evidente que me interessa o que as pessoas pensam da minha música. Mas mentiria se dissesse que isso me leva a desviar um passo que seja do meu caminho. Restam-me cerca de quarenta anos de vida e estou a ouvir o tique-taque do relógio. Da música que tenho na minha cabeça, ainda não publiquei mais de dez por cento. E isso, muitas vezes, faz-me entrar em pânico. De qualquer modo, na escola, nunca pertenci ao grupo das ‘cheerleaders’: eu era aquela que se sentava na última fila da aula com as aranhas nos bolsos". (2007)
30 May 2007
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