12 March 2007

REENCONTRO COM A MEMÓRIA



O acontecimento é pouco menos do que histórico: mais de 30 anos depois da data original de publicação são finalmente reeditados, em CD, os célebres cinco volumes dos Arquivos Sonoros (os míticos cinco LP de capa de serapilheira) onde Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça reuniram o resultado das suas recolhas de música popular tradicional portuguesa. Resultado de um trabalho isolado e individual iniciado no final da década de 50 pelo etnomusicólogo corso e, logo depois, acompanhado estreitamente pelo compositor da História Trágico-Marítima, neles se incluía um valioso conjunto de espécimes da tradição rural, divididos por cinco regiões (Trás-os-Montes, Minho, Beiras, Alentejo e Algarve). Inicialmente editados em quantidade extremamente limitada, rapidamente se esgotaram não tendo, desde então, voltado a estar a acessíveis e passando a constituir, por isso mesmo, um dos tesouros perdidos do património cultural nacional. Embora sendo apenas uma parcela ínfima da totalidade das recolhas realizadas por Giacometti e Graça, é um importante primeiro passo no sentido da divulgação generalizada desse trabalho que ambos sempre desejaram mas que, enquanto vivos, não tiveram oportunidade de concretizar.



Numa das raras entrevistas de fundo que, em vida, concedeu (realizada em Abril de 1979, no momento em que - um ano após ter sido despedido do INATEL -, sob encomenda do Departamento de Música da Secretaria de Estado da Cultura, se preparava para editar dois discos com os Bonecos de Santo Aleixo), Michel Giacometti falou-nos desenvolvidamente acerca da forma como o seu trabalho se iniciara, dois ou três meses depois da sua vinda para Portugal, em 1959, quando (embora sem ser especialista, como confessava) se começou a interessar pela música portuguesa.

«Nasceu do meu contacto directo com Trás-os-Montes onde me desloquei sem ideias preconcebidas mas sabendo já que lá existiam tradições arcaicas através do livro de um americano que tinha estado em Portugal e registado música tradicional em 1926. Quando vim, tinha um gravador o que, na altura, era uma coisa rara. Até há alguns anos, havia em Portugal um grupo de etnólogos reaccionários, os Pires de Lima, que defendiam que o trabalho de recolha devia ser todo escrito, notado, e que os gravadores eram uma coisa satânica... Esta gente dominava a etnografia portuguesa. Quando fui a Trás-os-Montes, mostrei as gravações ao Lopes-Graça que ficou um bocado espantado porque não imaginava que ainda existissem em 1959 espécimes tão puros.»



Foi essa descoberta que o determinou a ficar cá e a investigar. Voltou a Trás-os-Montes e passou lá meses e meses. Depois, decidiu-se a actuar de modo sistemático percorrendo Minho, Algarve, Alentejo e Beiras. Estava, porém, condicionado pelos problemas materiais e pelas dificuldades de deslocação o que obrigava a que nunca pudesse existir um plano determinado e tudo funcionasse de forma pouco planificada:

«Decidíamos, por exemplo, investigar a Beira Baixa porque lá havia uns amigos que podiam facilitar os contactos e os alojamentos, sem nenhuma razão especial para ser a Beira e não o Alto Alentejo. Muitas vezes também gravava coisas que, à noite, tinha de desgravar até às três ou quatro da manhã para, no dia seguinte, ter mais um bocadinho de fita para gravar.»



Nas condições políticas anteriores ao 25 de Abril, havia ainda outros previsíveis obstáculos que tinha de encarar e que era necessário saber tornear com habilidade e... o sentido de humor possível na altura:

«Diversas vezes, a PIDE me investigou, embora sempre de uma maneira muito discreta. Nunca perguntaram directamente o que eu andava a fazer. Mas quando deixava as malas numa pensão sabia que iam ser revistadas por 'um senhor que estava lá a viver', que, ao jantar, metia conversa comigo e que era 'representante da Volkswagen'... Aconteceu mais do que uma vez escolherem esta 'profissão'.»

A principal dificuldade, contudo, residia na falta de apoio, até moral, de qualquer entidade. De qualquer modo, nessas inúmeras viagens através do país, um dos aspectos que lhe prendeu a atenção foi o contraste entre os espécimes da tradição popular autêntica que recolhia e o «folclore» fabricado dos ranchos que, então, passavam por música regional verdadeira mas que, segundo Giacometti,

«correspondiam apenas à política cultural oficial. Era uma maneira de ter na mão organizações populares que poderiam ter outro sentido e que assim estavam limitadas a cantar e a dançar um 'folclore' que já à partida era deturpado e que, a seguir, passava por uma espécie de filtragem. É por isso que, se recolhermos as letras cantadas pelos ranchos folclóricos, vemos que são letras castradas porque não há dúvida que o povo, exprimindo-se à vontade, teria cantado outras. Mas o chefe do grupo dizia 'vocês não vão cantar esta quadra, não podem aparecer assim no festival...'.»



Na sua opinião, isto acontecia não só no aspecto social e político mas também naquelas quadras que, «como diz o povo, eram um bocadinho apimentadas». O que representava um filão de uma extrema riqueza que facilmente surgiu depois do 25 de Abril no resultado das recolhas que realizou com estudantes, um filão que foi cortado pela raiz mas que permaneceu na memória das pessoas. E Giacometti comparava as recolhas até aí realizadas com o que ele próprio descobrira:

«Quando percorremos os cancioneiros, a maior parte dos quais publicada durante o fascismo (deve haver mais de 200 000 quadras recolhidas), verificamos que, dessas, só umas cem terão um carácter social ou ligeiramente reivindicativo. E vemos que, depois do 25 de Abril, numa semana de trabalho em qualquer zona do país, apareciam centenas e centenas de quadras que já existiam antes. Havia camponeses que escreviam versos e que, como na Chamusca, os escondiam debaixo do chão dentro de uma cana, só as tendo desenterrado depois do 25 de Abril. Chegavam a ter medo da sua própria memória.»


Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça

Por essa altura, Fernando Lopes Graça também tinha já efectuado algumas recolhas na Beira Baixa, embora muito limitadas em virtude de não possuir estruturas suficientes. Como relatava Giacometti, Graça dificilmente sobrevivia, não tinha possibilidades de se deslocar e tinha complicações com a própria polícia em virtude das suas ligações com o PCP. A colaboração entre os dois iniciou-se quando o etnomusicólogo solicitou apoio à Fundação Gulbenkian para prosseguir as suas investigações:

«O Lopes-Graça fazia parte de uma comissão de à qual pertenciam também o Jorge Dias e o Artur Santos. Depois da recolha em Trás-os-Montes apresentei o trabalho à Fundação para pedir um subsídio. Embora o Jorge Dias e o Lopes-Graça estivessem de acordo (democraticamente, eram dois votos contra um), a Fundação recusou e o Lopes-Graça demitiu-se. Eu soube disso e falei com ele. Estávamos os dois um bocadinho no mesmo barco e eu gostava de continuar as investigações. Foi assim que começou a nossa colaboração de vinte anos.»



Em 1979, no entanto, Giacometti confessava que desde o 25 de Abril não tinha praticamente feito investigação musicológica e que, desde há sete ou oito anos, começara a considerar que o seu trabalho tinha sido um tanto «incompleto». Tanto no aspecto sociológico («era muito difícil uma pessoa com um gravador, uma máquina fotográfica e uns cadernos penetrar numa aldeia e tentar recolher o folclore e, com a vigilância policial e as dificuldades materiais, tentar integrar esta música no seu contexto social, desenvolvendo um inquérito sociológico. Tornava-se suspeito, especialmente para um estrangeiro. Neste aspecto, a coisa tinha de ser feita quase clandestinamente») como na falta de dimensão das recolhas de literatura oral. Isso constituía uma limitação considerável, uma vez que, para ele, a música não existiria independentemente de outros elementos:

«Num serão, há também quem conte uma anedota, um mais velho que diz um conto e estas coisas formam um todo que é arbitrário dissociar se queremos perceber a vida das aldeias sem distorcer a realidade».



Foi nesse quadro de dificuldades e de ausência de meios que acabaram por ser gravados e publicados os cinco discos dos Arquivos Sonoros, em edições reduzidas de 200/300 exemplares. Como contava Giacometti, era necessário empenhar algumas coisas, depois vendiam-se e pagava-se a edição. Embora em retrospectiva - confessava - lhe tivesse ficado a sensação amarga de que o resultado havia sido exactamente o contrário do que pretendiam:

«Nós desejávamos que esta cultura voltasse ao povo, que ele se apercebesse do seu valor através de edições feitas por gente da cidade mas que estava perto dele. O que não conseguimos porque os discos eram caros precisamente porque a edição era limitada e iam cair nas mãos da boa burguesia que tinha poder de compra. Era um círculo vicioso».


Fernando Lopes Graça

O trabalho que nesse domínio se fizera a seguir ao 25 de Abril não correspondera, entretanto, ao que ele estava à espera. Embora encontrasse razões para pensar que era difícil que as coisas tivessem acontecido mais rapidamente, nesse momento Giacometti enumerava o que, segundo ele, teriam sido as «incompetências, oportunismos, incompreensões e até boas vontades mal controladas». O que o conduzia a pensar que se poderia ter ido mais longe, nomeadamente na reedição e divulgação da Antologia de Música Regional e no prosseguimento de acções como o Plano de Trabalho e Cultura que ele criara e que, divididos em grupos de três ou quatro, mobilizara cerca de duzentos estudantes que - contava - haviam recolhido mais material do que nos 50 anos anteriores, especialmente nos aspectos da literatura popular e da recuperação de cerca de 1200 instrumentos de trabalho rural, «o que permitiria pôr já a funcionar um Museu do Trabalho». Provavelmente sem supor, então, que somente vinte anos depois a Antologia... seria reeditada, Giacometti esboçava o que, na sua opinião, deveriam ser as linhas mestras de uma política de inventário da tradição musical popular:



«Constituir, talvez a nível de uma Secretaria de Estado, um grupo de trabalho que planificasse uma investigação à escala do país, de recolha da música e da literatura popular, aprofundando o trabalho já realizado e formando pessoas capazes de o levar a cabo e dar a máxima divulgação aos seus elementos mais significativos sem repetir os erros e dogmatismos que, naturalmente, cometemos depois de 50 anos de fascismo.»

Porque será que, em 1999, as suas palavras continuam estranhamente actuais? (1999)

1 comment:

Anonymous said...

Texto interessante, bom trabalho