22 March 2007

EM NOME DA VISÃO POP



Stephin Merritt fuma muito. Muito mesmo. Por cada um dos meus cigarros ele fuma dois e, ao princípio da tarde em que conversei com ele no café do De Balie, de Amsterdão, eu já tinha despachado o primeiro maço do dia. Também bebe muito chá. E, em palco, não deixa de fumar. Mas, aí, ele e os Magnetic Fields com ele, são o tipo de experiência a que é indispensável assistir: o improvável casamento perfeito entre a mais absoluta informalidade familiar e a reprodução exacta da milagrosa pop simultaneamente erudita e infecciosa de que se faz o prodigioso triplo álbum 69 Love Songs. Às tantas, a teclista e vocalista Claudia Gonson, após uma ou duas guitarras terem caído ao chão, anuncia "Parece que Deus deseja que nós sejamos uma banda punk experimental". Pouco depois, Merritt, na sua minúscula figura de Woody Allen, acaba o concerto gloriosamente empoleirado numa cadeira. Horas antes, frente a um cinzeiro sobrelotado, ele dissertara sobre canções suecas de reggae, Irving Berlin e os Abba.



Tanto quanto sei, nunca ninguém publicou um triplo álbum de 69 canções de amor ou sequer algo próximo disso. Quando pensou neste projecto, teve algum modelo em mente?
Assim que comecei a pensar nisso, a primeira coisa que fiz foi uma busca na Internet para averiguar se já alguém teria feito algo parecido. O mais semelhante que encontrei foi um grupo punk chamado Sham 69... Inicialmente, cheguei a pensar nele como um álbum de cem canções. Mas isso não durou mais de trinta segundos porque rapidamente me apercebi que seria impossível. A ideia foi precisamente cortar com a rotina habitual de publicar anualmente um álbum igual aos anteriores. Por isso, em vez de fazer algo qualitativamente novo, decidi-me por uma coisa quantitativamente diferente. Agradou-me aquele lado de "linha de montagem" da escrita de um elevado número de canções de amor. Fiz uma entrevista ao Tom Lehrer (um "songwriter" do início dos anos sessenta que escrevia optima sátira social) onde ele me confessou que, em 69 canções de amor, há pelo menos, 68 a mais... (risos). Ele tentou escutar o disco mas a verdade é que detesta activamente canções de amor.



A ideia que fica da audição do disco é que terá procurado demonstrar a possibilidade de, a partir do tema "canções de amor", ser possível desdobrá-lo infinitamente em todos os estilos musicais existentes, como se estivesse a escrever um compêndio pop...
Não só isso mas também o facto de os géneros musicais serem definidos de uma forma bastante arbitrária. A "love song", por exemplo, é muito mais um género do que o reggae que foi uma das categorias musicais mais ridículas que se inventaram. Não é que eu não goste de reggae mas a verdade é que tudo que tenha sido gravado na Jamaica nos últimos quarenta anos (reggae/dance hall/lovers'rock) acaba por ser apenas visto como...reggae, obrigatoiamente com a acentuação da guitarra no tempo fraco. Quando, afinal, a "música da Jamaica" é apenas aquela que aborda tópicos de interesse para os jamaicanos. Sempre detestei ir a uma loja de discos e ter de procurar um disco de Brian Eno ou da Yma Sumac em doze secções diferentes. Estará em "exotica"? "vozes femininas"? "Perú"? A minha colecção de discos está por ordem alfabética.



No filme (e no livro) High Fidelity, uma das personagens organiza a colecção de discos por ordem autobiográfica...
Se não se tiver muitos discos e se possuir uma boa memória, esse é um sistema muito prático. A minha técnica consiste em recusar-me a comprar prateleiras novas. Possuo um número maximo de 650 CD. Sempre que o ultrapassar terei de me desfazer dos excedentes.

Quando começou a escrever 69 Love Songs, tinha um plano pré-definido de temas e estilos a abordar ou foi apenas escrevendo ao sabor da inspiração?
Não, não fiquei à espera da inspiração: passei dias inteiros em bares e cafés a escrever as canções. O meu único método foi concentrar-me nessa tarefa: escrever canções e não pensar em mais nada. Tal como o Irving Berlin cujo método consistia apenas em começar a trabalhar às dez da manhã e tocar durante várias horas, todos os dias. Eu fiz exactamente o mesmo o que não chega sequer a ser um método mas apenas dedicação exclusiva ao trabalho. Depois, fiz enormes listas de diferentes tipos de canções de amor, diferentes combinações de instrumentos e de quem as deveria cantar e como, diferentes enredos arrumados em categorias que, a seguir, cruzei: por exemplo, nunca ninguém escreveu uma canção sueca de reggae com um endeamento de acordes à maneira dos anos 50 inteiramente tocada em sintetizadores e com o enredo de "Momma Told Me"... Ou inteiramente conceptuais como "Punk Love".



Quando compõe é sempre assim tão metodicamente enciclopédico?
Não. Normalmente, escrevo a partir do meu caderno de apontamentos. Neste, quis proceder de modo diferente. E, para o que virá a seguir, queria voltar a fazê-lo mas não faço a menor ideia de como irá ser.

Quem é que imaginaria a interpretar versões destas suas canções?
Era capaz de pensar em cinco hipóteses para cada uma das sessenta e nove... Mas, para a totalidade do álbum, a primeira pessoa em que pensei foi na Emmylou Harris. Ou na Linda Ronstadt que canta todos os géneros. "Papa Was A Rodeo" foi inspirada nos duetos de Nancy Sinatra com Lee Hazlewood enquanto outras partiram da tradição associada a Johnny Cash.



Outra das suas referências obrigatórias são os Abba...
O que sempre gostei neles foi a pureza matemática das canções que lhes permitia sobrepôr harmonias infinitas e milhões de partes de teclados nas misturas sem que isso soasse sobrecarregado nem as canções deixassem de ser simples.

É verdade que "The Luckiest Guy On The Lower East Side" é sobre Irving Berlin?
É. O Irving Berlin vivia na mesma zona em que eu vivo, no Lower East Side de Manhattan. Casou-se com uma mulher de estatuto social superior ao dele. Era um emigrante russo com uma identidade judaica muito forte e isso era socialmente pouco aceitável. Serviu-se do seu sucesso como escritor de canções para conseguir ser aceite na sociedade e para conquistar uma mulher que era, então, considerada a mais bela da América. Ele não era feio de todo mas não era, de certeza, nenhum Rodolfo Valentino. Esta canção aborda essa relação em que ele possui uma espécie de superpoder pelo facto de ter um carro o que, suponho, poderá ser considerado como uma metáfora para a escrita de canções.



Esclareça-me por fim: porquê, numa canção, encenar o assassinato do linguista Ferdinand de Saussure em nome de Holland-Dozier-Holland, os míticos compositores da Tamla-Motown?
Nessa canção, Ferdinand de Saussure afirma que nunca poderemos saber nada acerca do amor e eu digo que ele apenas utilizou uma perspectiva errada: Holland-Dozier-Holland sabem muito sobre o amor. Por isso eu o abato acabando com a sua visão desconstrucionista e semiótica em nome da visão pop do mundo. Se a ciência nada nos tem a dizer acerca do amor, a pop tem. Mas esse é apenas o ponto de vista da personagem dessa canção, não o meu. Pessoalmente, nunca seria capaz de matar Holland-Dozier-Holland nem Ferdinand de Saussure... até porque ele já morreu há muito tempo, provavelmente antes até de Holland-Dozier-Holland terem nascido.



Este álbum, nos EUA, já vendeu dez vezes mais do que qualquer dos anteriores: sente-se em risco de se tornar uma estrela pop?
Receio que já tenha sucumbido aos horrores de me tornar uma estrela pop. Em Nova Iorque, já me reconhecem na rua mas, felizmente, em Londres ainda não. A não ser que seja numa loja de discos... (2000)

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