19 November 2024

Revisões da matéria dada (XXXVI)
 
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MEA MAXIMA CULPA

(publicado no nº 11 da "Granta")

(sequência daqui) Barbaridade seguinte: Tom Waits. O crime de difamação não terá sido da mesma gravidade mas, em contrapartida, desculpas, justificações e atenuantes eram totalmente inexistentes. Tratou-se tão só de um caso — sério, seríissimo — de vistas curtas. Ou melhor, de reles condicionamento auditivo. O ponto de partida não enfermava de nenhum defeito: Waits era caracterizado como "encarnando a imagem do boémio 'beat' à deriva, tão miticamente americano como, por exemplo, Springsteen. Mas, ainda que sendo ambos exactamente da mesma idade, a personagem-Waits é a de um Springsteen precocemente envelhecido a quem apenas resta meio pulmão em funcionamento, incapaz já de perder um segundo a pentear-se ao espelho retrovisor de um 69 Chevy ou de vibrar com as aventuras vertiginosas nos crepusculares 'highways' povoados de heróis em fuga". E, desenhando mais precisamente cenário e atmosfera, observava: "Entre um jazz de fundo de bar e uma omnipresente garrafa de Jack Daniel's, Tom Waits oscila de uma teologia particular ("You know there ain't no Devil, there's just God when he's drunk") a uma concepção de saúde muito pessoal ("I don't have a drinking problem except when I can't get a drink") conseguindo, por vezes, ser impagável e, talvez involuntariamente, cómico: poucos momentos conseguem fazer soltar uma gargalhada tão incontrolável como quando, em "Christmas Card From A Hooker in Minneapolis", a sua rosnadela trôpega de velho buldogue asmático inicia a recitação tartamudeando 'Hey Charley, I'm pregnant'" (segue)

17 November 2024

(com a colaboração do correspondente do PdC em Pequim)
"The Dark-Eyed Gypsy"
 
(sequência daqui) Personagens estabelecidas da música tradicional irlandesa apesar de não gozarem de projecção equivalente no exterior, Nuala (voz e flauta), de Dundalk - isto é, conterrânea dos exuberantes The Mary Wallopers -, e O'Leary (voz, guitarra, bouzouki) - "dubliner" transplantado para Nova Iorque -, oferecem aqui um menu de temas tradicionais aprendidos junto das melhores fontes. Tais como "I Will Hang My Harp On A Willow Tree" via Anita Best, folclorista da Terra Nova, "Ag Bruach Dhún Réimhe" (sobre um poema do poeta do século XVIII, Art Mac Cumhaigh) ou "Liffeyside", através de Cathal McConnell, cantor, recolector, flautista e pilar dos históricos The Boys of the Lough que aqui se descobre na companhia de menos vetustos iguais da estirpe de Bonnie “Prince” Billy e Anaïs Mitchell.

16 November 2024

MEA MAXIMA CULPA

(publicado no nº 11 da "Granta")

(sequência daqui) E, não sendo tal blasfémia, pelos vistos, suficiente, após caracterizar a nova personagem ("É verdadeiramente o 'songwriter' a quem o qualificativo de 'novo Dylan' assenta que nem uma luva. O que ele, aliás, parece ser o primeiro a desejar: da capa de Rave On — um exacto 'remake' da de Another Side Of Bob Dylan — à música e aos textos que começam no ponto exacto onde Dylan 'parou', tudo aponta para o retomar de um caminho interrompido que White parece empenhado em percorrer"), sardonicamente, concluia: "Vinte anos depois do celebérrimo acidente de moto, Bob Dylan, enfim recuperado, pode, de uma vez por todas, despedir o duplo que fez o favor de o substituir durante duas décadas e retomar pessoalmente a escrita, gravação e interpretação das suas canções. Se o duplo se retirará de livre vontade da cena que teve o prazer de ocupar durante tão largo período é o que restará agora verificar". Registe-se, então, que Andy White nunca gravaria Oh Mercy (1989), Time Out Of Mind (1997), Love And Theft (2001), Modern Times (2006), Together Through Life (2009), Tempest (2012), e Rough And Rowdy Ways (2020), não escreveria Chronicles: Volume One (2004) nem The Philosophy Of Modern Song (2022), não seria a semente do magnífico I'm Not There (“um filme inspirado pela música e pelas muitas vidas de Bob Dylan”), de Todd Haynes (2007), e muito menos se veria distinguido com o Prémio Nobel da Literatura (2016). (segue para aqui)

(via OMQ)

14 November 2024

MEA MAXIMA CULPA

(publicado no nº 11 da "Granta")

(sequência daqui) Três anos depois, o truque parecia continuar a funcionar. Escrevendo na "Rolling Stone" de 30 de Agosto sobre a banda sonora de Dylan para Pat Garrett & Billy the Kid, de Sam Peckinpah, Jon Landau — o "descobridor" de Bruce Springsteen — decretaria: “A mais importante figura do rock branco dos anos 60 transformou-se numa das menos significativas dos anos 70. Mas o que causa maior perplexidade parece ser a deliberada intenção desse declínio”. De facto, por essa altura, Dylan parecia fazer tudo para demolir a imagem que, até esse momento, se lhe havia colado, chegando a manter uma perigosa relação de proximidade com o Rabbi Meir Kahane, da Jewish Defense League, uma organização sionista de extrema-direita. A publicação de Blood On The Tracks (1975), Basement Tapes (com a Band, 1975) e Desire (1976) parecia apontar para uma suspensão de pena mas não tardaria muito até que — após uma peculiar epifania ocorrida quando, durante um concerto, um fã lhe atirou para o palco um crucifixo —, durante três anos e outros tantos álbuns (Slow Strain Coming, 1979, Saved, 1980, e Shot Of Love, 1981), Dylan se afundasse na superstição evangélica neo-carismática do cristianismo "born again" tal como o Vineyard Movement o pregava. Das homilias em palco às tentativas de evangelização dos que partilhavam o estúdio com ele (o veterano produtor de R&B, Jerry Wexler, amavelmente dissuadi-lo-ia: "Bob, tens à tua frente um velho judeu, ateu, de 62 anos. Vamos só gravar um disco, está bem?..."), tudo parecia, desta vez, apontar para que o plano inclinado não fosse apenas um adereço. 

Justamente o momento adequado para, a propósito da publicação do álbum de um estimável "singer-songwriter" irlandês que não incendiaria a história da música (para que conste: Rave On, de Andy White, 1986), com todas estas desculpas, justificações e atenuantes, lhe lavrar a certidão de óbito. O que, nas páginas do "Expresso", cobrindo-me para sempre de vergonha, implacavelmente fiz: “Não consegue entender-se muito bem por que motivo uma geração inteira, há anos, persiste em convencer-se e em tentar convencer as seguintes que Bob Dylan, do ponto de vista criativo, não se encontra definitivamente empalhado, suscitando sempre expectativas de ressurreição — invariavelmente infundadas — aquando de cada nova edição sua. Como se não fosse transparentemente evidente que (com excepção de esporádicos e isolados fogachos de brilhantismo posteriores), após Highway 61 Revisited e Blonde On Blonde e, em grau menor, John Wesley Harding, Dylan nunca mais conseguiu igualar-se a si mesmo ainda que a sua influência tenha permanecido, até hoje, quase intocada". (segue para aqui)

EXÍLIO MEDITERRÂNICO

 
Hydra é uma das ilhas Sarónicas do Mar Egeu na qual, mui civilizadamente, por lei, automóveis e outros veículos motorizados sáo proíbidos, apenas sendo autorizado o transporte por meio de burro, mula e cavalo. A aproximá-la um pouco mais do estatuto de micro-paraíso terrestre (ainda que não a salvo da marabunta turística) existe ainda a população de umas largas centenas de amistosos gatos vadios que se deixam venerar por locais e visitantes. Não espanta, pois, que, a convite de Lawrence Durrell, tenha sido escolhida como refúgio por Henry Miller (que a classificou como ""wild and naked perfection") enquanto escrevia O Colosso de Maroussi (1941) ou por Leonard Cohen que lá - na companhia da amantíssima Marianne Ihlen - comporia "Hey, That's No Way To Say Goodbye","'Bird on the Wire", e "So Long, Marianne". Terá sido, talvez, em busca da mesma inspiração de que se alimentaram tão ilustres antecessores que Nuala Kennedy e Eamon O’Leary optaram pelo aprazível exílio mediterrânico em Hydra, transformando uma oficina de tecelagem do século XVIII com vista para o oceano em estúdio de gravação do álbum que tomaria o nome da ilha. (daqui; segue para aqui)

13 November 2024

E, depois da "Europe's West Coast", que tal "Lagoa: o faroeste do Allgarve"?

MEA MAXIMA CULPA

(publicado no nº 11 da "Granta")

Havia todas as desculpas, justificações e atenuantes. Que, na verdade, até já vinham de há muito. É perfeitamente possível identificar e datar o primeiro grande sobressalto: os 40 000 caracteres da crítica a Self Portrait — o álbum maldito de Bob Dylan —, no número de 23 de Julho de 1970 da “Rolling Stone”, que Greil Marcus iniciava com um perplexo “What is this shit?...” E ia violentamente mais longe pondo em causa a valia da obra anterior de Bob Dylan (“Em 65 e 66, seríamos assim tão impressionáveis? Não teremos sobrevalorizado algo que, afinal, não era melhor do que isto? Aqueles discos tão intensos terão sido apenas acidentais?”), mas, ao mesmo tempo, ensaiando um diagnóstico: “Há uma curiosa tendência para o auto-apagamento. Dylan retira-se de uma posição na qual lhe é exigido que exerça o poder. Quase como o duque de Windsor abdicando do trono”

Não falhava por muito o alvo. Verdade ou mentira, como viria a admitir 34 anos depois em Chronicles: Volume One, se decidira atribuir a Self Portrait o estatuto de caixote do lixo, o intuito era o de repelir os enxames de fãs que o assediavam, exigindo “que saísse à rua e os conduzisse sabe-se lá onde, e deixasse de me esquivar aos meus deveres de porta-voz de uma geração. (...) Eu apenas cantara canções directas que falavam de realidades novas e poderosas. Tinha muito pouco em comum e sabia ainda menos de uma geração de que era o suposto porta-voz. (...) Sentia-me como um pedaço de carne atirado aos cães. (...) Escreviam-se histórias acerca de eu andar em busca de mim, numa demanda interior atormentada. Tudo isso me parecia óptimo. Gravei um álbum duplo [Self Portrait] para o qual atirei tudo o que colasse e não colasse à parede. (...) Convencera-me de que, quando a crítica demolisse a minha obra, o mesmo aconteceria comigo e o público esquecer-me-ia”. (segue para aqui)