Mão Morta - Há Já Muito Tempo Que Nesta Latrina O Ar Se Tornou Irrespirável
Há muitos, muitos anos, quando o mundo era jovem e o optimismo antropológico ainda reinava, sonhava-se com a criação do Homem Novo. E, de entre as muitas confrarias que conspiravam na sombra (comunistas pró-soviéticos, maoistas, trotskistas, guevaristas e infinitas seitas anarquistas), destacou-se uma heresia que realizou provavelmente a única crítica verdadeiramente radical do velho mundo que havia que derrubar e substituir. Eram herdeiros da visão dadaista, aplicavam-se na desmontagem dos mecanismos últimos por meio dos quais as sociedades modernas contemporâneas desenvolviam e perpetuavam a famosa "alienação" que Marx descobrira e, do Maio de 68 parisiense à insurreição punk de uma década mais tarde (podem ler essa parcela da "história secreta do século XX" em Lipstick Traces, de Greil Marcus), todo o pensamento subversivo mais original e provocador descendeu precisamente deles, os revolucionários da Internacional Situacionista.
Para sua glória (e inevitável desgraça de recuperação futura), a maioria das intervenções da IS traduziu-se em textos e slogans eminentemente citáveis: "Nada queremos de um mundo no qual a garantia de não morrer de fome se troca contra o risco de morrer de tédio", "O desespero da consciência fabrica os assassinos da ordem, a consciência do desespero, os assassinos da desordem", "A esperança é a trela da submissão", "Os revolucionários da Comuna deixaram-se matar até ao último para que também tu possas comprar uma cadeia estereofónica Philips de alta fidelidade" ou "Apoiamos incondicionalmente todas as formas de liberdade de costumes, tudo aquilo a que a canalha burguesa ou burocrática chama deboche. Naturalmente, está fora de questão prepararmos a revolução da vida quotidiana com base no ascetismo", dos quais (como eles próprios, sem dúvida, seriam capazes de prever...) vários se acabariam por converter em matéria prima publicitária da própria "sociedade do espectáculo" que denunciavam. Ou não se terá reparado ainda no "soixante huitard" famoso "Sejamos realistas, exijamos o impossível" espalhado por inúmeros "outdoors" das nossas cidades?
É sobre este património teórico insurrecional que se edifica Há Já Muito Tempo Que Nesta Latrina O Ar Se Tornou Irrespirável, o último álbum dos Mão Morta, capítulo seguinte num percurso de esventramento da irrealidade contemporânea que teve o seu momento mais friamente cirúrgico no anterior Müller no Hotel Hessischer Hof. Estruturado como uma colagem de canções, fragmentos de noticiários absurdos (ou nem por isso), "inserts" radiofónicos e "IDs" dos elementos do grupo, constrói um mosaico de panfletos elípticos talhados numa massa de rock espesso, abrasivo e granítico que se inicia com um "aviso à população": "Esta madrugada deu-se uma fuga do sector dos lazeres. O grupo Mão Morta abandonou o nicho alternativo que ocupava no mercado do entretenimento. Os seus membros, aptos a exercer diferentes ofícios, podem facilmente infiltrar-se noutros sectores da nossa democracia. São considerados perigosos. Qualquer informação relativa a estes indivíduos deve ser imediatamente comunicada ao jornalista da sua área". O que, de certo modo, corresponde exactamente à verdade.
Na qualidade de herdeiros daquele grupo de não mais de 70 elementos ("Um pouco mais do que o núcleo inicial da guerrilha na Sierra Maestra mas com menos armas, um pouco menos do que os delegados que estiveram em Londres em 1864 para fundar a Associação Internacional dos Trabalhadores mas com um programa mais coerente, tão poucos como os gregos das Termópilas mas com melhor futuro") que, entre 1957 e 1972, sonhou com a implosão de "uma civilização do prosaísmo e da minúcia vulgar, um ninho para os homúnculos de que falava Nietzsche", Adolfo Luxúria Canibal e acólitos retomam o trabalho de toupeira de Guy Debord, Raoul Vaneigem e restantes Situacionistas. E, como "anjos de pureza que invadem os lazeres", propõem-se ironicamente a missão de, "depois de uma espectacular fuga do mercado do entretenimento e de uma meteórica aparição no mercado da cultura", se concentrarem no ataque à "sociedade de consumo e ao lugar de mercadoria que ela lhes destina" através da publicação de um CD "já à venda nas boas discotecas". Mais um episódio, afinal, no desenvolvimento da "técnica do golpe do mundo" de Alexander Trocchi, essa "revolta cultural que deve tomar conta das redes de expressão geradoras do espírito (...), escora indispensável e infraestrutura arrebatada de uma nova ordem das coisas". Ou, na pior das hipóteses, apenas um bom purificador do ar... (1998)
9 comments:
Olha o youtube da música:
http://www.seeqpod.com/
(repare-se que aparecem meia dúzia de músicas sempre, mas ao lado tem a continuação, tem montes)
(também tem a opção de vídeo quando há o vídeo, em mp3 repetidos é necessário ver qual aquele que tem o vídeo)
Tudo isto é muito engraçado, especialmente num "contexto antropológico-musical", mas, no fundo no fundo, não passa de revisionismo marxista.
"no fundo no fundo, não passa de revisionismo marxista"
Se quisermos continuar a usar essas categorias,então, eu chamar-lhe-ia antes "revisionismo anarquista". Whatever that means...
Ou então: exercícios de estilo de jovens com paizinhos endinheirados, tempo livre e crónica tendência para a retórica enfatuada.
Ná, por aí não ia.
Exigem o impossível mas matam o sonho. Espartilham a fantasia e teorizam, teorizam, usam e abusam da retórica. Não é por acaso que os seus chavões tenham sido tão bem adaptdados pelo mundo que deviam levar à derrocada. Para esse peditório já não dou.
E lembra-te: os revolucionários da Comuna deixaram-se matar até ao último para que também tu possas encomendar o teu "Lipstick Traces" na Amazon.
Os revolucionários da Comuna?! Caramba, isto anda mesmo politizado por aqui
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