31 March 2021

San Salvador - "Quau te mena"

(sequência daqui) "Apesar de a Igreja preconizar o livre consentimento dos cônjuges no matrimónio, apesar de o amor cortesão fazer da mulher aparentemente 'a senhora' do trovador, em ambos os casos esta, na verdade, servia os interesses masculinos. (...) Mas, na Cocanha, em função do seu espírito panteísta, sexo e sentimento formam um todo que se manifesta de forma constante e natural. Não há necessidade de um espaço específico para o jogo amoroso, como a côrte no caso trovadoresco, ou um espaço para legitimar a união sexual, como a igreja no caso do cristianismo. (...) A Cocanha ultrapassa o conceito amoroso tanto cristão quanto feudal, ao possibilitar liberdade sexual - ali faz-se amor nas ruas -, sem com isso diminuir o padrão moral das pessoas, que são virtuosas como os clérigos e corteses como os trovadores". (Hilário Franco Júnior - Cocanha - A História de Um País Imaginário - 6)

Cocanha - 5 Cants Polifonics A Dançar (na íntegra aqui)
Major Biden confunde, pela 2ª vez, pessoa anónima com o Trampas; 
para a próxima, não pode falhar!

Major Biden
Verdadeiro ou falso, desde há muito que experiências equivalentes são, diariamente, realizadas com humanos (e sob diversos ângulos)
 

28 March 2021


(sequência daqui) Sim, é uma história de família(s) habitantes na aldeia de Saint Salvadour (menos de 300 almas), na Corrèze, e de transmissão hereditária de sábios conhecimentos: “Temos orgulho em testemunhar através da nossa música que os territórios são reservatórios de línguas e de cultura enriquecidos por sucessivos contributos. O nosso alvo é dizer a modernidade do occitano e a diversidade francesa. Estas músicas reinventam-se há séculos”, explica Gabriel a propósito das vertiginosas polifonias de cortar a respiração que incluiram no álbum de estreia, La Grande Folie: um turbilhão de vozes e percussões, entre canções “de terroir”, uma Meredith Monk anfetaminada, "drones" e microtonalidades hipnóticas, e corais sofisticadamente selvagens, “uma música o mais em bruto possível, como o punk, um jogo de construção e reconstrução de um folclore imaginário”.


(com a colaboração do correspondente do PdC em Pequim)

27 March 2021

Se a rudimentar criatura imagina que isto é "uma nação inteira a ser prejudicada", quando, um dia, por milagre, se der conta dos (muitos) momentos em que "a nação inteira" foi, é e será verdadeiramente "prejudicada" tem uma paragem cardíaca
Steeleye Span - "Twa Corbies"

(daqui; ver também aqui)
Um dos momentos em que o núcleo duro da horda troglodita-medieval que vive nas caixas de comentários do pasquim direitolas online espuma fel e baba perante um texto apenas sensato e razoável (ver também aqui)
... e, ainda, o FIFI (Foco Infeccioso das Festas Ilegais) - portugueses sempre, sempre especiais!
Mont-Jòia - Cançons Dei Festas Provençalas

(ver aqui; álbum integral aqui)

26 March 2021

Eles é que são (???) os 9 presidentes da junta!

TURBILHÃO
 

Do lado de lá da Mancha, Fairport Convention – com Liege & Lief (1969) – e sua imensa côrte tinham dado o tiro de partida. Em muito pouco tempo, as ondas de choque alcançariam o hexágono gaulês e a descendência revelar-se-ia vasta e riquíssima: do sumo-sacerdote Alan Stivell, a uma legião de bandas – La Bamboche, Mont-Jòia, Le Grand Rouge, Mélusine, Tri Yann, La Chifonnie, Perlinpinpin Fòlc, Malicorne, Maluzerne – totalmente entregue à escavação da tradição musical popular e à (sempre perigosamente escorregadia) busca das identidades locais. Chegaram a ter uma espécie de orgão central do movimento, a revista “L’Escargot Folk” publicada entre 1974 e 1980, e vários de entre eles migraram, literalmente, das cidades para o campo, em regime de dedicação exclusiva à missão de guardiões do património. Olivier Durif, de Le Grand Rouge, foi um desses militantes recolectores que, não apenas chegaria a ser director do Centre des Musiques Traditionnelles du Limousin, como, em modo de John e Alan Lomax, daria ao mundo Eva e Gabriel, continuadores da causa e um dos dois pares de irmãos que, com outro par de primos, viriam a constituir os formidáveis San Salvador. (daqui; segue para aqui)
Anne Briggs - "Summer's In"
 
(sequência daqui) O período que abrange começa no momento em que, no número 49 da Greek Street, no Soho londrino, abria o folk club “Les Cousins” (nome inspirado pelo filme homónimo de Claude Chabrol) onde, em alternativa à ortodoxia folk de Ewan McColl e "hardliners" afins, uma fresquíssima vaga de gente – Davy Graham, Bert Jansch, John Renbourn, Sandy Denny, The Strawbs, Incredible String Band, The Young Tradition, Anne Briggs, Martin Carthy, John Martyn... – desempoeirava as “sagradas escrituras” e, sem cerimónia, expunha-as a toda a sorte de heresias, do embrionário psicadelismo aos subterrâneos esoterismos lendários da “old, weird Britannia” pagã. Vários deles reencontram-se nestas 60 faixas mas valerá a pena dizer que, com mui honrosas excepções, não é por acaso que alguns nomes (Fairports, Pentangle, Steeleye, Third Ear Band, Young Tradition, Tim Hart & Maddy Prior, Shirley Collins, Mr Fox, todos aqui presentes) mais facilmente se recordam: eles eram incomparavelmente melhores.

24 March 2021

Conselho da Europa propõe castração química (mas também pode ser cirúrgica, sem anestesia) de André Ventura
 
Edit (25/03/2021) - ... e a Virgínia exige que lhe seja aplicada a pena de morte
Hiperson - "The Curtain"

(do álbum No Need For Another History, na íntegra aqui)
Thomas Morley - Dances for Broken Consort, from the Consort Lessons, Book 1 (Early Music Consort of London, dir. David Munrow)
OLD, WEIRD BRITANNIA
 

"Sumer Is Icumen In" é o mais antigo cânone inglês, escrito no dialecto de Wessex do Middle English, na segunda metade do século XIII. O manuscrito no qual foi descoberto encontrava-se na abadia de Reading e é incertamente atribuído tanto a John Farnsette – monge dessa abadia – como a W. de Wycombe (aliás, Willelmus de Winchecumbe ou William of Winchcomb), compositor e copista do Herefordshire. Ouvimo-lo já neste século no preciosíssimo 1000 Years Of Popular Music (2003), de Richard Thompson – essa fantástica viagem que se inicia, justamente, com "Sumer Is Icumen In" e, passando por Orazio Vecchi, Thomas Morley, Gilbert & Sullivan, Cole Porter, Easybeats, Kinks e tradicionais vários, se conclui, em glória, com Britney Spears –, e, mais recentemente, como porta de entrada em forma de "sample", para Half-Light (2017), do Vampire Weekend foragido, Rostam Batmanglij. Serve, agora, também como título de mais uma colectânea da Grapefruit, selo da Cherry Red para raridades museológicas: Sumer Is Icumen In: The Pagan Sound of British & Irish Folk 1966-1975.(daqui; segue para aqui)
 
Spriguns Of Tolgus - "Flodden Field"
Ensemble Oni Wytars - Pentamerone

(álbum integral aqui)

23 March 2021

Ensino à distância | revisão da matéria dada:
 
 
(sequência daqui) Deve dizer-se, realmente, “faixa” e não “canção”. Porque, à excepção do tema-título – e prolongando os cenários cripto-"new age" de Ghosteen, desta vez, frequentemente virados do avesso para um lado de pavor sobrenatural quase "giallo" –., não existem aqui canções mas apenas desnorteados labirintos de "ostinati" massacrantes, pelo meio de uivos estrangulados de guitarra, pesados cortinados de orgãos catedralícios e crescendos corais, entre um gospel passado a ferro e a festa de catequese, à deriva sobre farrapos de melodias entrevadas e arpejos de teclas rudimentares. Tudo isto generosamente recheado de abundantes “A time is coming, a time is nigh, for the kingdom in the sky”, “The hand of God coming from the sky”, e “Lavender fields that reach high beyond the sky”, abrasados por um previsível “biblical sun” e, aqui e ali, um surrealismozinho de algibeira (“I am a Boticelli Venus with a penis”), paredes meias com rimas embaraçosas (“Sometimes I see a pale bird, wheeling in the sky, but that is just a feeling, a feeling when you die”) e lirismos comprometedores (“The moon is a girl with tears in her eyes”). Não será, decerto, a primeira nem a última vítima do lema “first thought, best thought”, mas é muito provável que, na comunidade dos seus vizinhos de Brighton & Hove – segunda cidade mais ateia (42.4% ), do Reino Unido, logo, logo a seguir a Norwich (42.5%), vice-campeâ europeia da modalidade, embora a considerável distância de Berlim (60%) –, não venha a ser o disco mais popular do ano.

22 March 2021

Perguntas óbvias mas necessárias
 (ver também aqui, aqui e aqui)
LIMPAR O PÓ AOS ARQUIVOS (LXVII)


(clicar na imagem para ampliar; a "perca" - a "bold" e tudo - em vez de "perda" é indesculpável...; ver também aqui)
La Bamboche, Malicorne, Le Grand Rouge, La Chifonnie - Grand Bal Folk

(ver aqui; álbum integral aqui)
"Racism is real in America. And it has always been. Xenophobia is real in America, and always has been. Sexism, too"

(ver aqui)

21 March 2021

 
(sequência daqui) Gravado num espaço de poucas semanas durante o "lockdown", é o segundo passo de Nick Cave e Warren Ellis no método de composição iniciado em Ghosteen – mas já ensaiado nas cerca de duas dezenas de bandas sonoras para cinema, teatro e televisão criadas por ambos –, no qual, a matéria-prima são os textos de Cave reconfigurados durante sessões de prolongada improvisação (como explica Warren, “duas pessoas sentadas numa sala dispostas a correr riscos, e o que tiver de acontecer, acontece”) e, por fim, cirurgicamente editados e misturados numa perspectiva de libérrimo "bricolage" sonoro, muito pouco preocupado com formatos tradicionais. O confinamento parece não o ter afectado demasiado (“Em muitos aspectos, o confinamento pareceu-me estranhamente familiar (...) Isto não será uma surpresa, pois fui viciado em heroína durante muitos anos e o auto-isolamento e o distanciamento social eram as regras do jogo. Também conheço bem a mecânica do luto – o luto colectivo funciona de uma forma assustadoramente semelhante ao luto pessoal, com a sua confusão sombria, profunda incerteza e perda de controlo. O confinamento parece-me uma versão dirigida pelo Estado de mais do mesmo – uma formalização do tipo de comportamento de eremita para o qual sempre tive uma certa predisposição”) até porque, sem, de facto, se terem esforçado tremendamente, “o disco como que caíu do céu. Foi uma dádiva”. Cuja primeira faixa é, inevitavelmente, "Hand of God". (segue para aqui)
O "Ur-Fascismo" (VIII)
"O Ur-Fascismo ainda paira à nossa volta, às vezes em trajos civis. Seria tão confortável para nós se alguém assomasse à cena do mundo e dissesse: "Quero reabrir Aushwitz, quero que as camisas negras tornem a desfilar em parada pelas praças italianas!" Mas, ai, a vida não é assim tão fácil. O Ur-Fascismo ainda pode voltar sob as vestes mais inocentes.O nosso dever é desmascará-lo e apontar a dedo cada uma das suas novas formas - diariamente, em todo o mundo". (Umberto Eco, Como Reconhecer o Fascismo/Da Diferença Entre Migrações e Emigrações, 1997)
Como David Bowie diria,
 

20 March 2021

Sempre a crescer, com a bófia (pedagogicamente) a ver, a horda medieval aposta, agora, tudo no FIST (Foco Infeccioso de Sábado à Tarde), que esta vergonha de não haver sequer 10 mortes por dia não pode continuar
La Maurache – Éloge Du Vin Et De La Vigne De Rabelais À Henri IV

(álbum integral aqui)
"Transtorno dissociativo de identidade é uma perturbação mental caracterizada por pelo menos dois estados de personalidade distintos. Os diferentes estados de personalidade revelam-se de forma alternada no comportamento da pessoa"

(sequência daqui) "A narrativa cocaniana é uma luta alegórica que valoriza o Carnaval diante da Quaresma. A terra maravilhosa com os seus excessos alimentares, alcoólicos e sexuais é um Carnaval ininterrupto. (...) Ao contrário das demais festas, cujo espírito pagão não tinha sido anulado pela evangelização, a Quaresma era essencialmente cristã. Apesar de as suas restrições terem sido flexibilizadas ao longo da Idade Média, ela continuava a ser um dos grandes símbolos da cultura eclesiástica, daí a forte e difundida resistência laica a ela. (...) A Quaresma também é ridicularizada pelo Fabliau de Coquaigne, segundo o qual ela ocorre no país maravilhoso apenas uma vez a cada vinte anos. E ainda por cima, sem restrições alimentares ou sexuais. A Cocanha, terra da vida (fartura, juventude, sexo livre), nega a Quaresma, símbolo da morte (jejum alimentar, abstinência sexual, decadência física)" (Hilário Franco Júnior - Cocanha - A História de Um País Imaginário - 5)
Cocanha - "Dempuèi Auriac" (do álbum i ès ?, aqui na íntegra)

19 March 2021

A JOKE A DAY KEEPS THE DOCTOR AWAY (LXXXII)

Mr Fox - Mr Fox

(álbum integral aqui; ver aqui e aqui)

Cpl. George Bushy, left, holds the youngest child of Shigeho Kitamoto, center, as she and her children are forced to leave Bainbridge Island, Wash., in 1942. They were sent to an internment camp
 
 
(extraídos desta caixa de comentários)
 
(sequência daqui) Tomemos, então, nota: 1) nos tempos que correm, é manifestamente impossível perguntar a Nick Cave o horário dos comboios de Brighton para Londres sem que a resposta venha embrulhada numa chuva de citações, do Génesis à Epístola aos Coríntios; 2) não há paradoxo ou absurdo teológico que um golpe de prestidigitação retórica não reduza a pó; 3) como “toda a arte é perfeitamente imperfeita” e “todos os juízos de valor acerca dela são largamente subjectivos e despropositados”, este texto deveria terminar imediatamente aqui. O que, convenhamos, é um gigantesco passo em frente relativamente ao período medieval do Bob Dylan-"born again": ele podia pregar aos gentios mas, pelo menos, não extrapolava de modo tão invasivo. É verdade que, desde o início, e, em especial, a partir de The Good Son (1990), Cave cultivou um certo perfil de profeta apocalíptico maldito. Mas, sem dúvida, “The Red Hand Files” proprcionou-lhe um púlpito de uma tentadora dimensão muito mais vasta, que tanto lhe serve a ele como megafone para elucubrações estético-teológicas como a nós para o encarar enquanto divã de psicanalista: Cave vai escrevendo e nós, armados em Sigmunds (ainda mais) de trazer por casa, vamos lendo e interpretando. O que até nem é extraordinariamente difícil e, no que toca a Carnage – de modo igual ao anterior Ghosteen (2019), anunciado quase casualmente num post como “um disco brutal mas muito belo abrigado numa catástrofe comunitária” –, tem pano para inúmeras mangas. (segue para aqui)

Como se já não bastasse este marketing pornográfico, o chefe da seita (que é muito fofinho e progressista) promete que "vai rezar": a ciência que se lixe, a superstição é que importa!

Edit (12:00) - Pensando melhor, a estratégia de "marketing" é bem capaz de ter surgido durante esta sessão de "brainstorming"...

17 March 2021

Le Grand Rouge - Traverser du Pays

(álbum integral aqui)
 
(sequência daqui) Também em Janeiro, o Goran, de Liubliana, na Eslovénia, dirigia-lhe a interrogação “Como sabe se escreveu algo valioso? Qual é o seu processo?” Já não será muito arriscado imaginar que Sua Santidade Nicholas Edward Cave pegou na Bíblia mais à mão (confirma-se, pegou) e, citando a sua “passagem preferida do Novo Testamento”“Maria Madalena e a outra Maria permaneceram, à espera, diante do sepulcro” –, fez descer sobre o esloveno a boa nova: “Esta frase parece-me resumir o processo de criação. William Blake dizia que ‘Jesus é a imaginação’ e essas palavras sempre ecoaram em mim. Reuniram as noções de Jesus e do acto de criação e elevaram-no à esfera do sobrenatural. Grande parte do processo da escrita de canções é esperar atentamente frente ao desconhecido. Em vigília, à espera que Jesus – a ideia divina, a ideia bela – saia do túmulo e se revele. Tal como Maria Madalena não reconheceu Jesus, também, muitas vezes, a ideia bela nos parece estranha e improvável. Continuamos à espera, alerta e preparados para a receber. Não confiemos nas ideias que nos chegam demasiado facilmente. Não queremos uma ideia em segunda mão. Queremos uma ideia nova, a ideia bela. A ideia difícil e perturbadora, cintilando suavemente por entre as ideias mortas e defeituosas, puxando-nos a manga, delicada mas persistentemente – a ideia de Jesus”. (segue para aqui)
 

15 March 2021

Não tenho nenhum prazer em dizê-lo mas "I told you so"...
IMPERFEITAMENTE IMPERFEITO


Era já noite e Nick Cave caminhava pelas ruas brilhantes de chuva, junto à igreja de Saint Mary Abbots que, diante dele, se erguia “misteriosa e vazia, com o pináculo iluminado a tocar os céus”. Foi nesse momento que lhe ocorreu a pergunta que, em Janeiro, nos “Red Hand Files” – o seu blog/"newsletter online" –, o Tom, de Chicago, Illinois, e a Leah, de Ypsilanti, no Michigan, tinham enviado: “Is shitty art worth making?” Gravemente, Cave responde: “A Bíblia abre com a história da criação – ‘No princípio, Deus criou o céu e a terra’”. E, qual teólogo benignamente pedagógico, prossegue: “A história conta-nos que Deus considerou que a sua criação era ‘muito boa’. Devo dizer que concordo inteiramente – o mundo não é apenas muito bom, é perfeito – tão perfeito que é capaz de conter em si coisas profundamente imperfeitas. É uma obra-prima que envolve uma falha essencial e estimulante – a nossa humanidade. No que respeita à ‘shitty art’, toda a arte é perfeitamente imperfeita – tal como o próprio mundo – e, em certa medida, todos os juízos de valor acerca dela são largamente subjectivos e despropositados. (...) Qualquer coisa que nos anime positivamente é uma reencenação da história original da criação. Tenhamos ou não consciência disso, criar arte é um encontro religioso”. Regressando à chuvosa noite inicial, conclui: “E, de súbito, era um momento perfeito – um momento perfeito alojado numa catástrofe humana partilhada mas, ainda assim, perfeito”. (daqui; segue para aqui)
Se ainda não tinham entendido, eis mais uma óptima razão para dizer adeus à maligna seita da Vaticano S.A.

12 March 2021

O "politically correct" (aliás, nada de confusões, a "inclusive language"), definitivamente apostado em, pela via da redução ao ridículo, fornecer munições à direitalhada
Bill Callahan & Bonnie Prince Billy - "The Night of Santiago" 
(Leonard & Adam Cohen)

STREET ART, GRAFFITI & ETC (CCLXIX) 

Porto, Portugal, 2020

11 March 2021

(álbum integral)

(sequência daqui) A música enquanto cavalo de Tróia dos textos e das ideias dispõe, então, de uma via de acesso milimetricamente pavimentada: para edificar “a big complicated album that was hi-fi, rhythmic, passionate and painful”, foi necessário imaginar o ritmo como uma jaula (“O que colocamos nos espaços entre as barras de ferro? Quanto menos emoção se situasse no ritmo, mais espaço haveria, para o resto da música e da voz”), entregá-la a uma propulsiva dupla – Kieran Adams e Philippe Melanson – com o nó sinusal sintonizado na onda de Bryan Devendorf, dos National, controlar com mão de ferro os momentos de régua e esquadro no estirador e os de absoluta liberdade, apontar sax, flauta, guitarra, piano e sintetizador para um lugar algures entre uns Prefab Sprout e Blue Nile tingidos de jazz. E, aí chegados, encarnar, verdadeiramente, o papel de estação meteorológica dedicada à detecção dos sinais do apocalipse. Se tudo não correr irremediavelmente mal, talvez possa estabelecer-se um acordo acerca do diagnóstico. Aquele que, à “Stereogum”, Tamara propõe, é, sem dúvida, acertado: “O problema não é a ignorância. Uma teoria da conspiração não é ignorância, é conhecimento falso que arrumamos num espaço acerca do qual nada sabemos. Ignorância é quando pensamos não ser ignorantes. E, quando, perante um mistério, não temos a humildade de dizer ‘é possível que eu não compreenda’. No momento em que sabemos que não compreendemos, talvez consigamos começar a ser mais cautelosos e a fazer mais perguntas”. Resta saber se funciona.
... e ainda outra Society For Putting Things On Top of Other Things (embora, neste caso, "a aplicação estruturada da 'ciência' comportamental" com o objectivo de "levar a uma 'mudança de comportamentos individuais e coletivos'” já seja um bocadinho inquietante)

09 March 2021


"A détournement (XXIII) of the original French postcard (designed by Louis Buffier) featuring a colorized photograph of the famous “Ne travaillez jamais” (Never Work) graffito, for which Debord claims ownership. This was released on the occasion of COVID-19 and the shift to remote work during the pandemic" (aqui)

(sequência daqui) "Enfim, os cocanianos passam a vida a comer, beber e fazer sexo. A integrarem-se, portanto, na Natureza. A fundirem-se com ela. Logo, a Cocanha não é uma festa qualquer, é um tipo especial, é a festa por excelência, é uma orgia. É o momento (ilimitado no caso cocaniano) no qual, graças a cantos, danças e vinho, atinge-se o ékstasis ("sair de si"), possibilitando a sensação de enthusiasmós ("ter um deus dentro de si"), consequentemente de manía ("loucura sagrada"), enfim, de órguia (possessão divina na celebração). (...) De maneira semelhante às antigas festas gregas em honra de Diónisos, a Cocanha é uma comemoração de carácter agrário, carnavalesco, orgiástico, igualitário, propiciatório" (Hilário Franco Júnior - Cocanha - A História de Um País Imaginário - 4: segue para aqui)
(álbum integral aqui
La Chifonnie - La Chifonnie + Au Dessus du Pont

(ver aqui; álbuns integrais aqui)
Como diria o Biden, 
(e não é "prol", mas "prole")

(sequência daqui) A resposta é não, não pode. “Of all the many things that you may ask of me, don’t ask me for indifference” diz ela, no nono capítulo desta averbação – ampliada, reflectida, redobrada – do divórcio entre a espécie humana e a Terra, etapa mais recente de um percurso com rumo bem definido: “Escrevo canções acerca de coisas que existem. É uma forma de combater aquela música que é, frequentemente, sobre fantasias. Prefiro concentrar-me na realidade e em verdades mais profundas e que passam despercebidas”, lê-se na biografia do Bandcamp. É, justamente, por esse lado que entram Varda e a enigmática personagem dos espelhos: “A câmara pretende convencer-nos que sabe tudo mas não sabe. Quis apenas abrir um pequeno portal para que as pessoas pudessem compreender que há mais coisas para ver. A ideia era atrair o olhar e devolvê-lo imediatamente. Como se eu fosse invisível. E também uma metáfora visual para como nos sentimos quando actuamos: para o bem e para o mal, as pessoas projectam-se em nós e esperam que lhes enviemos um reflexo”, explicou à “Pitchfork”.

 

O grande tema, mesmo quando isso não é aparente, é a arrasadora devastação a que o planeta tem sido submetido às mãos da ignorância politicamente motivada. Mas sem nunca recorrer a palavras de ordem nem agitar bandeiras para que se entenda que “the robber” personifica a avidez capitalista legalizada (e até sedutora: “When I was young, I learned how to make love to the robber, to wring from his hand the touch of a lover”) ou que "Wear" (“I tried to wear the world like some kinda jacket, it does not keep me warm, I cannot еver seem to fasten it“) não tenha sido inspirado por desfiles de moda. “Esse tipo de linguagem panfletária, musicalmente, nunca resulta, a menos que estejamos a escrever uma canção de protesto. Já tentei fazê-lo e falhei sempre. Escrever uma canção de protesto é a coisa mais difícil em que se pode pensar”. (segue para aqui)

07 March 2021

Rats On Rafts on 2 Meter Sessions: "Prologue: Rain"/"A Trail Of Wind And Fire"/"The Rise And Fall Of The Plague"/"Tokyo Music Experience"/"Part One: The Long Drought"/"Part Two: Crossing The Desert"/"Where Is My Dream?"

COMO SE FOSSE INVISÌVEL

A câmara desce da copa das árvores sobre o corpo de uma mulher que, no meio da floresta, observada de forma apática, quase sonâmbula, por meia dúzia de pessoas, dança. Num lento "travelling", desassossegado pela pontuação tensa das percussões e rasgado por golpes orquestrais, aproxima-se de Tamara Linden que, olhando-nos desconfiadamente, canta: “I never believed in the robber, I never saw nobody climb over my fence, no black bag, no gloved hand, I never believed in the robber”. Sem aviso, fala para um microfone que lhe é dirigido e, logo a seguir, à frente de duas agitadas baterias e envergando casaco e calças forrados de espelhos, qual Beth Gibbons suavemente exaltada pelas avalanches de cordas, proclama: “No, the robber don't hate you, he had permission, permission by words, permission of thanks, permission by laws, permission of banks, white table cloth dinners, convention centers, it was all done real carefully.” É o video de "Robber", primeira canção de Ignorance, último álbum de The Weather Station ("nom de plume" de Tamara). Nessa altura, ainda não o suspeitamos mas todo o programa que nas restantes nove faixas irá desenvolver-se acaba de ser-nos apresentado.

"Robber"

Numa "newsletter" do ano passado dirigida aos fãs, Lindeman escrevia acerca do seu conhecimento tardio da obra da cineasta belga Agnés Varda, desaparecida em 2019. E descrevia-a como uma artista “desprovida de ego que, através da objetiva, ampliava, mudava e renovava tudo. O seu olhar cinematográfico é sempre o da restauração e da generosidade. Coisa tão rara!” A afinidade era natural: a própria Varda confessara que o que mais desejava não era mostrar mas “suscitar nas pessoas o desejo de ver”. Para alcançar o mesmo, em Ignorance, Tamara Lindeman não se limita a retomar a proposta que Lou Reed colocara na voz de Nico — "I’ll Be Your Mirror" — mas, qual caleidoscópio, cobre-se literalmente de espelhos.

"Tried To Tell You"

Em "Tried To Tell You", no seu "traje de luces" mágico, é uma “lady in the lake” medieval que emerge das águas para, dissipando a névoa — “Some days there might be nothing you encounter, to stand behind the fragile idea that anything matters, I feel as useless as a tree in a city park, standing as a symbol of what we have blown apart” —, conduzir uma solitária personagem e extrair flores da boca e imaginá-las a desabrochar em terreno árido, e "Atlantic" vê-a transformar-se de ponto de luz desfocado em “mirror ball” humana que, na escuridão noturna de um bosque, exclama “My god, what a sunset!” e logo se interroga: “Thinking I should get all this dying off of my mind/ I should really know better than to read the headlines, does it matter if I see it? No really, can I not just cover my eyes?” (daqui; segue para aqui)