30 November 2024

Rollerskate Skinny - "Some Give Birth"


"Shoulder Voices is the debut album by Rollerskate Skinny, released in 1994. (...) 'Trouser Press' called the album 'a fascinating and delightful debut that jumps easily from intimate indie tunefulness (the vocals sound like Pavement) to free-fire pop noise, with plenty of wild and wonderful textures along the continuum'. (...) 'Washington City Paper' wrote: 'Mixing the sonic textures of My Bloody Valentine with the rich melodies of Echo & the Bunnymen and angular, runaway rhythms, Voices' layered brilliance was maniacally complex, immediately catchy, and refreshingly innovative'". (ver aqui; álbum integral aqui)
Há bastante tempo que não se falava da petúnia murcha; há bastante tempo que não se falava da aventalagem; olha... juntaram-se!

29 November 2024

E, pronto, perderam todos a fé

HERDAR AS VOZES

Durante uma considerável parcela da sua história, e, particularmente, durante o Estado Novo, o fado não gozou de imaculada reputação junto de intelectuais e oposicionistas do regime salazarista/marcelista. Eça de Queiroz, logo desde o início, não pesava as palavras: "Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito, Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa que criou? O fado. Tem uma orquestra de guitarras e uma iluminação de cigarros. A cena final é no hospital e na enxovia. O pano de fundo é uma mortalha”. Pinto de Carvalho/Tinop, autor de uma História do Fado (1903), enterrava a lâmina ainda mais fundo: “O fadista, minado de taras, avariado pelas bebidas fortes e pelas moléstias secretas, com o estômago dispéptico, o sangue descraseado e os ossos esponjados pelo mercúrio - é um produto heteromorfo de todos os vícios, atinge a perfeição ideal do ignóbil”. E, mais à frente, Fernando Lopes-Graça - compositor e investigador das tradições musicais populares - apenas encarava o fado como “canção incaracterística e bastarda, o execrando fado, produto de corrupção da sensibilidade artística e moral quando não indústria organizada e altamente lucrativa” (A Canção Popular Portuguesa, 1953). Embora já algumas décadas adiante, e após a transformação profunda que Amália Rodrigues e Alain Oulman lhe haviam imprimido, ver José Mário Branco, o autor de "A Cantiga É Uma Arma" ("O faduncho choradinho, de tabernas e salões, semeia só desalento, misticismo e ilusões, canto mole em letra dura, nunca fez revoluções", 1975), em ameno convívio com fadistas não seria algo de muito previsível. Mas foi por aí mesmo que se iniciou a história conjunta de Zé Mário e Camané que, agora, em Camané ao Vivo no CCB – Homenagem a José Mário Branco este recorda. 

    JOÃO LISBOA - Como foi o vosso primeiro encontro? 

    CAMANÉ - Quando era ainda muito novo, escutava-o como ouvinte vulgar (neste disco canto alguns temas que me fizeram chegar a ele por ter gostado muito de o ouvir). Depois, uma noite que ia a sair do "Faia", tinha eu, para aí, 19, 20 anos, encontrei o Zé Mário com o Carlos do Carmo. Estavam a fazer um concerto suponho que no S.Luis, e o Carlos do Carmo apresentou-mo. Foi muito simpático e apercebi-me que ele já gostava de fado, tinha-se rendido ao fado. Entretanto, na altura, a Aldina Duarte organizava uns finais de tarde de fado no Teatro da Comuna e o Zé Mário, de vez em quando, ia ouvir-me. Começámos a falar imenso sobre fado e sobre a visão que ele tinha do fado que era muito parecida com a minha: o fado tem uma estética muito própria, as pessoas ouvem um fado e, intuitivamente, identificam-no como fado. É importante manter isso, não perder essa referência no percurso do passado para o futuro. Foi fantástico ele ter-me dito que sim quando lhe pedi para produzir um disco meu. (daqui; segue para aqui)

"Emigrantes da quarta dimensão (Carta a J.C.)"
Catherine Nixey - Heresia: Jesus Cristo e os Outros Filhos de Deus (I)

(segue para aqui; ver também aqui)

28 November 2024

25 November 2024

MEA MAXIMA CULPA (VIII)

(publicado no nº 11 da "Granta")


(sequência daqui) A única salvação poderá muito bem ser — mas é só um palpite... — a de passar por aquele tipo de circunstâncias nas quais, sem aviso nem piedade, somos obrigados a afocinhar na própria ignorância. Pela minha experiência, posso assegurar que é assaz pedagógico. Aconteceu no café mouro M'Rabet, do "souk" El Attarine, em Túnis, quando, por efeito da milagrosa voz de barítono que se libertava de um minúsculo leitor de cassetes, senti o mundo dilatar-se à minha volta. Talvez com curiosidade demasiado turística — então eu sabia perfeitamente quem era a diva Oum Kalthoum e desconhecia aquela voz? — atrevi-me a perguntar quem cantava. Com justo e visível desprezo, fui polidamente humilhado: "É apenas o maior cantor árabe de todos os tempos, Mohamed Abdel Wahab!". De rabo entre as pernas, fui investigar. Era tudo verdade. Tão verdade quanto a minha ignorância adicional acerca de Habiba Msika, a "femme fatale" tunisina dos anos 20, Sayid Darwich, Asmahan ou Farid al-Atrash. Às vezes, ser reduzido à condição de verme rastejante pode ser muito educativo.
Isto não é assim uma espécie de racismo fofinho ou, se calhar, 

24 November 2024

Rollerskate Skinny - "Swingboat Yawning"

(daqui; álbum na íntegra aqui)

MEA MAXIMA CULPA (VII)

(publicado no nº 11 da "Granta")

(sequência daqui) Mas verdadeieamente sísmico foi o encontro imediato com os Rollerskate Skinny! No "field report", relataria quase telegraficamente "um concerto de rock flamejante (como em 'gótico flamejante') construído sobre um 'patchwork' de Sonic Youth na técnica de esforço dos materiais, Echo & The Bunnymen na complexidade da arquitectura, Pixies na disciplina formal e Neil Young no arrojo clássico, num somatório elevado à milésima potência". Porém, escutado Horsedrawn Wishes (1996), não houve hipérbole insuflada que bastasse para traduzir o estado alterado de consciência por via exclusivamente sonora. Começava — evidentemente — com "Toca-me então a mim finalmente dizer: eu vi o futuro da pop e ele chama-se Rollerskate Skinny!" e terminava, claro, bradando "Peço imensa desculpa mas este não é o meu álbum do ano, estou a reservar-lhe o lugar da década. Quanto ao século, se não se importam, dêem-me mais algum tempo para pensar". Pelo meio, avistava "uma prodigiosa (estou a pesar bem as palavras) montagem de 30 anos de pop, aos quais o trio de 'dubliners' extraiu todas as fibras vivas e, como Frankensteins competentes, a partir delas criou um novo organismo (...), rebuçados de melodia embrulhados em esquadrias de ruído, cenários surreais atravessados por intromissões lunares, moinhos sonoros e corais docemente labirínticos. Um edifício construído como uma catedral medieval desenhada por um Hyeronimus Bosch que trabalhasse para Walt Disney, com tanto de arte pop como de iluminura gótica (...), 'flashes' de Pet Sounds e o género de caótico bricabraque psicadélico de alquimistas esotéricos como Van Dyke Parks e os XTC. Queiram perdoar a miserável limitação das referências: aqui também há Gershwin, Pixies, Steve Reich, música concreta, Glenn Branca, Kevin Ayers e Ramones. Muito raras vezes 12 composições fizeram tão perfeito sentido de modo a ser absolutamente impossível excluir umas ou destacar outras. Aquilo com que muitos outros sonharam, os Rollerskate Skinny realizaram".

Seis meses mais tarde, no entanto, no balanço de final do ano, acalmada a extra-sístole e controlada a temperatura corporal, limitavam-se a surgir numa lista de 20 "clássicos, neoclássicos e estetas da colagem alucinada nos vários sectores do espectro pop/rock" que "através de reedições e novas publicações (...) marcaram distâncias em relação ao revisionismo puro e simples de que o 'britpop' se arvorou em paladino". Horsedrawn Wishes, segundo álbum da banda cujo nome fora subtraído a uma frase de The Catcher In The Rye, de J. D. Salinger ("She's quite skinny, like me, but nice skinny, rollerskate skinny") seria também o último. Várias vezes me interroguei se não me teria transformado num involuntário lançador de mau olhado sobre indefesos jovens génios irlandeses. (segue para aqui)

22 November 2024

MEA MAXIMA CULPA (VI)

(publicado no nº 11 da "Granta")

(sequência daqui) Poderia ainda acrescentar ao rol de desatinos a reacção inexplicavelmente alérgica a Steve McQueen (1985), dos Prefab Sprout ("É impossível não franzir o nariz a esta pop quase sem espinha nem energia, hipercarregada de efeitos e complicativa, piscando incessantemente o olho a si mesma e que, deslumbrada com tanta aparente versatilidade, é incapaz de seguir de modo escorreito um percurso melódico sem ceder à tentação de lhe sobrepor desvios 'espertalhões' a mostrar aos entendidos que a sabedoria até vai além dos desprezíveis quaternário e cadência de dominante-tónica") mas é obrigatório reconhecer que não se colecciona asneiradas apenas virando o polegar para baixo. O inverso também pode ser generosamente produtivo. 
 
Uma década depois, em Dublin, o festival Green Energy converter-se-ia em palco de aparições milagrosas. E juro solenemente, cross my heart and hope to die, que nada disso teve sequer vagamente a ver com o facto de o patrocinador do evento ser a cerveja Heineken. Por lá andavam Lou Reed, Goldie, Orbital e inúmeros anónimos (ou quase) mas a primeira revelação ocorreria num dos inúmeros palcos de bar/pub , de Temple Bar, o Fitzsimmon's. Poucos passos à minha frente, Nine Wassies From Bainne. Abalo existencial instantâneo: "Colisão frontal e fulgurante entre Zappa, a comédia Dada, Zorn, o fantasma electrocutado do rock, Hendrix, Captain Beefheart e todos os arredores mais delirantes desta área de catástrofe. Apenas uma bateria-turbo, um baixo em estado de taquicárdia e uma guitarra que viaja em voo picado, da distorção ao timbre de trompete, passando pelo contraponto de pedais e sonares alucinados, 'flashes' de derrapagem orquestral e intervalos de melodia encaixilhada em arame farpado", escreveria eu, ainda em levitação. E, solenemente, proclamava: "São de Cork, evitam a Inglaterra (demasiado 'trendy') e estão a caminho de Nova Iorque, em busca de editora. Não se esqueçam, foi aqui que ouviram falar deles pela primeira vez". Pela primeira e, muito provavelmente, a última. Porque, embora tenham encontrado a editora que procuravam, nela gravariam Ciddy Hall, único álbum da sua meteórica carreira discográfica, e pouco depois esfumar-se-iam. (segue para aqui)
Ó 44, e isto também é mentira?
Onde se comprova que há muito quem, de facto, necessite de um suplementozinho de inteligência

20 November 2024

MEA MAXIMA CULPA (V)

(publicado no nº 11 da "Granta")

(sequência daqui) Dava-se o caso, porém, de tudo isto vir à baila a pretexto da publicação de Swordfishtrombones (1983), um daqueles álbuns que definem clarissimamente um "antes" e um "depois" no percurso de quem os assina. Como ele explicaria em 1988 — já a descendência singular desse álbum se iniciara com os magníficos Raindogs (1985) e Frank's Wild Years (1987) —, "Os últimos álbuns têm contido bastantes ilusões de óptica, foram menos lineares, nenos convencionais. Tentei usar algumas técnicas para enevoar os contornos. As canções estão mais desfocadas. Basicamente, tentei provocar-lhes esgotamentos nervosos e, ao mesmo tempo, comunicar-lhes mais vida. Cada vez mais tento fracturar as coisas de modo a não lidar com elas tal como são. Começo a tornar mais abstractos os territórios familiares para lhes oferecer algo como um contexto cubista. Posso estar a olhar para a mesma ponte que tu mas desmantelada, recomposta de outra forma, à minha maneira. Digamos que procuro aplicar um martelo às situações. Não lhes colocar um espelho à frente, dar-lhes uma martelada. Vão por mim, sigam o meu conselho". E, socorrendo-se de uma saborosa metáfora culinária, revelaria o método: "Cozinho uma óptima galinha de churrasco com o meu próprio molho especial: manga, limão, alho e marinada de gengibre. É muito apreciada. Já muita gente me disse que deveria industrializá-la mas ainda não me acostumei à ideia. Cozinhar acaba por ser o mesmo que dirigir, arranjar e compor música. É a mesma psicologia de avaliar qual o ingrediente correcto, o que é compatível com o que se utilizou, quanto tempo deixar a apurar e quando voltar a mexer-lhe, se deve fritar-se ou cozer-se. A atitude é a mesma"

Ora, perdendo uma belíssima oportunidade para ficar calado, foi exactamente acerca de Swordfishtrombones que me pareceu bem fazer boquinhas à iguaria e, em modo enjoadinho, comentar: "Se é o primeiro álbum de que não pode dizer-se ser essencialmente idêntico a todos os outros (e essa fundamental permanência era — é? — um dos fascínios de Waits) não deixa, contudo, de ter a sua dedada suficientemente impressa. 'Johnsburg, Illinois', 'In The Neighborhood', 'Frank's Wild Years' ou 'Soldier's Things' poderiam figurar em qualquer uma das suas outras gravações. Porém, de um conjunto talvez excessivo de 15 faixas, emerge menos um álbum completo e acabado do que uma colecção de temas soltos e experiências instrumentais, ora eficazmente integrados no que parece ser uma quase tentativa de vaudeville, ora pura e simplesmente intrigantes e um tanto desarticulados". (segue para aqui)

19 November 2024

Revisões da matéria dada (XXXVI)
 
(clicar na imagem para ampliar)

MEA MAXIMA CULPA (IV)

(publicado no nº 11 da "Granta")

(sequência daqui) Barbaridade seguinte: Tom Waits. O crime de difamação não terá sido da mesma gravidade mas, em contrapartida, desculpas, justificações e atenuantes eram totalmente inexistentes. Tratou-se tão só de um caso — sério, seríissimo — de vistas curtas. Ou melhor, de reles condicionamento auditivo. O ponto de partida não enfermava de nenhum defeito: Waits era caracterizado como "encarnando a imagem do boémio 'beat' à deriva, tão miticamente americano como, por exemplo, Springsteen. Mas, ainda que sendo ambos exactamente da mesma idade, a personagem-Waits é a de um Springsteen precocemente envelhecido a quem apenas resta meio pulmão em funcionamento, incapaz já de perder um segundo a pentear-se ao espelho retrovisor de um 69 Chevy ou de vibrar com as aventuras vertiginosas nos crepusculares 'highways' povoados de heróis em fuga". E, desenhando mais precisamente cenário e atmosfera, observava: "Entre um jazz de fundo de bar e uma omnipresente garrafa de Jack Daniel's, Tom Waits oscila de uma teologia particular ("You know there ain't no Devil, there's just God when he's drunk") a uma concepção de saúde muito pessoal ("I don't have a drinking problem except when I can't get a drink") conseguindo, por vezes, ser impagável e, talvez involuntariamente, cómico: poucos momentos conseguem fazer soltar uma gargalhada tão incontrolável como quando, em "Christmas Card From A Hooker in Minneapolis", a sua rosnadela trôpega de velho buldogue asmático inicia a recitação tartamudeando 'Hey Charley, I'm pregnant'" (segue para aqui)

17 November 2024

(com a colaboração do correspondente do PdC em Pequim)
"The Dark-Eyed Gypsy"
 
(sequência daqui) Personagens estabelecidas da música tradicional irlandesa apesar de não gozarem de projecção equivalente no exterior, Nuala (voz e flauta), de Dundalk - isto é, conterrânea dos exuberantes The Mary Wallopers -, e O'Leary (voz, guitarra, bouzouki) - "dubliner" transplantado para Nova Iorque -, oferecem aqui um menu de temas tradicionais aprendidos junto das melhores fontes. Tais como "I Will Hang My Harp On A Willow Tree" via Anita Best, folclorista da Terra Nova, "Ag Bruach Dhún Réimhe" (sobre um poema do poeta do século XVIII, Art Mac Cumhaigh) ou "Liffeyside", através de Cathal McConnell, cantor, recolector, flautista e pilar dos históricos The Boys of the Lough que aqui se descobre na companhia de menos vetustos iguais da estirpe de Bonnie “Prince” Billy e Anaïs Mitchell.

16 November 2024

MEA MAXIMA CULPA (III)

(publicado no nº 11 da "Granta")

(sequência daqui) E, não sendo tal blasfémia, pelos vistos, suficiente, após caracterizar a nova personagem ("É verdadeiramente o 'songwriter' a quem o qualificativo de 'novo Dylan' assenta que nem uma luva. O que ele, aliás, parece ser o primeiro a desejar: da capa de Rave On — um exacto 'remake' da de Another Side Of Bob Dylan — à música e aos textos que começam no ponto exacto onde Dylan 'parou', tudo aponta para o retomar de um caminho interrompido que White parece empenhado em percorrer"), sardonicamente, concluia: "Vinte anos depois do celebérrimo acidente de moto, Bob Dylan, enfim recuperado, pode, de uma vez por todas, despedir o duplo que fez o favor de o substituir durante duas décadas e retomar pessoalmente a escrita, gravação e interpretação das suas canções. Se o duplo se retirará de livre vontade da cena que teve o prazer de ocupar durante tão largo período é o que restará agora verificar". Registe-se, então, que Andy White nunca gravaria Oh Mercy (1989), Time Out Of Mind (1997), Love And Theft (2001), Modern Times (2006), Together Through Life (2009), Tempest (2012), e Rough And Rowdy Ways (2020), não escreveria Chronicles: Volume One (2004) nem The Philosophy Of Modern Song (2022), não seria a semente do magnífico I'm Not There (“um filme inspirado pela música e pelas muitas vidas de Bob Dylan”), de Todd Haynes (2007), e muito menos se veria distinguido com o Prémio Nobel da Literatura (2016). (segue para aqui)

(via OMQ)

14 November 2024

MEA MAXIMA CULPA (II)

(publicado no nº 11 da "Granta")

(sequência daqui) Três anos depois, o truque parecia continuar a funcionar. Escrevendo na "Rolling Stone" de 30 de Agosto sobre a banda sonora de Dylan para Pat Garrett & Billy the Kid, de Sam Peckinpah, Jon Landau — o "descobridor" de Bruce Springsteen — decretaria: “A mais importante figura do rock branco dos anos 60 transformou-se numa das menos significativas dos anos 70. Mas o que causa maior perplexidade parece ser a deliberada intenção desse declínio”. De facto, por essa altura, Dylan parecia fazer tudo para demolir a imagem que, até esse momento, se lhe havia colado, chegando a manter uma perigosa relação de proximidade com o Rabbi Meir Kahane, da Jewish Defense League, uma organização sionista de extrema-direita. A publicação de Blood On The Tracks (1975), Basement Tapes (com a Band, 1975) e Desire (1976) parecia apontar para uma suspensão de pena mas não tardaria muito até que — após uma peculiar epifania ocorrida quando, durante um concerto, um fã lhe atirou para o palco um crucifixo —, durante três anos e outros tantos álbuns (Slow Strain Coming, 1979, Saved, 1980, e Shot Of Love, 1981), Dylan se afundasse na superstição evangélica neo-carismática do cristianismo "born again" tal como o Vineyard Movement o pregava. Das homilias em palco às tentativas de evangelização dos que partilhavam o estúdio com ele (o veterano produtor de R&B, Jerry Wexler, amavelmente dissuadi-lo-ia: "Bob, tens à tua frente um velho judeu, ateu, de 62 anos. Vamos só gravar um disco, está bem?..."), tudo parecia, desta vez, apontar para que o plano inclinado não fosse apenas um adereço. 

Justamente o momento adequado para, a propósito da publicação do álbum de um estimável "singer-songwriter" irlandês que não incendiaria a história da música (para que conste: Rave On, de Andy White, 1986), com todas estas desculpas, justificações e atenuantes, lhe lavrar a certidão de óbito. O que, nas páginas do "Expresso", cobrindo-me para sempre de vergonha, implacavelmente fiz: “Não consegue entender-se muito bem por que motivo uma geração inteira, há anos, persiste em convencer-se e em tentar convencer as seguintes que Bob Dylan, do ponto de vista criativo, não se encontra definitivamente empalhado, suscitando sempre expectativas de ressurreição — invariavelmente infundadas — aquando de cada nova edição sua. Como se não fosse transparentemente evidente que (com excepção de esporádicos e isolados fogachos de brilhantismo posteriores), após Highway 61 Revisited e Blonde On Blonde e, em grau menor, John Wesley Harding, Dylan nunca mais conseguiu igualar-se a si mesmo ainda que a sua influência tenha permanecido, até hoje, quase intocada". (segue para aqui)

EXÍLIO MEDITERRÂNICO

 
Hydra é uma das ilhas Sarónicas do Mar Egeu na qual, mui civilizadamente, por lei, automóveis e outros veículos motorizados sáo proíbidos, apenas sendo autorizado o transporte por meio de burro, mula e cavalo. A aproximá-la um pouco mais do estatuto de micro-paraíso terrestre (ainda que não a salvo da marabunta turística) existe ainda a população de umas largas centenas de amistosos gatos vadios que se deixam venerar por locais e visitantes. Não espanta, pois, que, a convite de Lawrence Durrell, tenha sido escolhida como refúgio por Henry Miller (que a classificou como ""wild and naked perfection") enquanto escrevia O Colosso de Maroussi (1941) ou por Leonard Cohen que lá - na companhia da amantíssima Marianne Ihlen - comporia "Hey, That's No Way To Say Goodbye","'Bird on the Wire", e "So Long, Marianne". Terá sido, talvez, em busca da mesma inspiração de que se alimentaram tão ilustres antecessores que Nuala Kennedy e Eamon O’Leary optaram pelo aprazível exílio mediterrânico em Hydra, transformando uma oficina de tecelagem do século XVIII com vista para o oceano em estúdio de gravação do álbum que tomaria o nome da ilha. (daqui; segue para aqui)

13 November 2024

E, depois da "Europe's West Coast", que tal "Lagoa: o faroeste do Allgarve"?

MEA MAXIMA CULPA (I))

(publicado no nº 11 da "Granta")

Havia todas as desculpas, justificações e atenuantes. Que, na verdade, até já vinham de há muito. É perfeitamente possível identificar e datar o primeiro grande sobressalto: os 40 000 caracteres da crítica a Self Portrait — o álbum maldito de Bob Dylan —, no número de 23 de Julho de 1970 da “Rolling Stone”, que Greil Marcus iniciava com um perplexo “What is this shit?...” E ia violentamente mais longe pondo em causa a valia da obra anterior de Bob Dylan (“Em 65 e 66, seríamos assim tão impressionáveis? Não teremos sobrevalorizado algo que, afinal, não era melhor do que isto? Aqueles discos tão intensos terão sido apenas acidentais?”), mas, ao mesmo tempo, ensaiando um diagnóstico: “Há uma curiosa tendência para o auto-apagamento. Dylan retira-se de uma posição na qual lhe é exigido que exerça o poder. Quase como o duque de Windsor abdicando do trono”

Não falhava por muito o alvo. Verdade ou mentira, como viria a admitir 34 anos depois em Chronicles: Volume One, se decidira atribuir a Self Portrait o estatuto de caixote do lixo, o intuito era o de repelir os enxames de fãs que o assediavam, exigindo “que saísse à rua e os conduzisse sabe-se lá onde, e deixasse de me esquivar aos meus deveres de porta-voz de uma geração. (...) Eu apenas cantara canções directas que falavam de realidades novas e poderosas. Tinha muito pouco em comum e sabia ainda menos de uma geração de que era o suposto porta-voz. (...) Sentia-me como um pedaço de carne atirado aos cães. (...) Escreviam-se histórias acerca de eu andar em busca de mim, numa demanda interior atormentada. Tudo isso me parecia óptimo. Gravei um álbum duplo [Self Portrait] para o qual atirei tudo o que colasse e não colasse à parede. (...) Convencera-me de que, quando a crítica demolisse a minha obra, o mesmo aconteceria comigo e o público esquecer-me-ia”. (segue para aqui)

10 November 2024

"Child Of Mine"
 
(sequência daqui) Há ruidos domésticos deliberadamente não eliminados, interlúdios instrumentais mas, de um modo geral, uma estrutura musical purificada na qual, quase insensivelmente, se infiltram os subtilíssimos arranjos de cordas (de Rob Moose) que se esquivam à gravidade e deixam estas onze peças a pairar na memória. Laura Marling ensaia uma síntese possível: "Tendo os 34 anos que, agora, tenho, 15 anos de carreira e 8 álbuns, não consigo fugir à sensação de que cada álbum constituiu como que um capítulo da minha vida (apesar de alguns serem realmente premonitórios). E eis-me aqui, após uma juventude tentando desesperadamente compreender o que é ser uma mulher, no topo da colina, com uma perspectiva enorme e inteiramente nova à minha volta. Um dos grandes privilégios da minha vida é, porque comecei muito cedo, ter agora a possibilidade de abrandar. Há até uma parte de mim que pergunta 'e se eu desaparecesse?' Talvez fosse bom esconder-me, fugir dos holofotes. Como a Kate Bush".

07 November 2024

Lone Justice - "Ways To Be Wicked"
(Tom Petty)

"No One’s Gonna Love You Like I Can"
 
(sequência daqui) E foi-o, sem dúvida, ao longo de 7 belíssimos álbuns - Alas, I Cannot Swim (2008), I Speak Because I Can (2010), A Creature I Don't Know (2011), Once I Was an Eagle (2013), Short Movie (2015), Semper Femina (2017) e Song for Our Daughter (2020) - e de um percurso temerário que a levou a vaguear solitária pelos EUA, a viver no deserto, a aproximar-se de figuras inquietantemente hippie/new age e, por fim, a regressar a Inglaterra. Um mês antes do nascimento da primeira filha, entregaria uma tese de mestrado sobre a psicanálise que era um sinal de que o seu processo de reequilíbrio interior estava no melhor caminho: "Cheguei à conclusão que a psicanálise era uma bela anedota - um assunto ridículo e completamente antiquado, recheado de erros problemáticos gritantes". Agora, Patterns In Repeat apresenta-se como um diário de reflexão sobre a maternidade e o universo à volta, higienicamente limpo de detritos sentimentais mas capaz de, com o mínimo de palavras - "Pullеd for meaning, I arched my back, and then from thе black you were born, forward leaning at first, abstract, you soon contract into form" -, propor uma infinidade de sentidos. (segue para aqui)

03 November 2024

"Patterns"
 
(sequência daqui) Na verdade, não será exactamente assim. Quando Sir Charles William Somerset Marling (o tal 5º baronete de Marling), mal Laura tinha completado 6 anos, se dispôs a ensinar-lhe os rudimentos da guitarra acústica, a primeira canção que aprendeu foi "The Needle And The Damage Done", de Neil Young, mais uma lista de TPC que incluía Bert Jansch e James Taylor e, hoje, se estende até Townes van Zandt e ajoelha perante o intocável Leonard Cohen ("Cohen foi um poeta de extraordinária elegância, um dos raros realistas-românticos, um género a que fui buscar inspiração para as minhas ainda curtas vida e carreira. O universo lírico dele é tão intenso, melancólico e solitário... mas, crucialmente, nunca isolado. É um 'storytelling' moderno, uma turbulência romântica adulta. Sempre o imaginei com 30 e tal anos, de fato completo, sempre olhando amavelmente para o mundo, interrogando-se sobre como caminhar nele, reflectindo sobre a sua última paixão e guardando espaço no coração para a seguinte"). Foi essa a Laura Marling que, aos 16 anos, trocou o Hampshire por Londres, mais exactamente pela nu-folk scene - Johnny Flynn, Mumford & Sons ou Noah & The Whale - que, na segunda metade dos anos 00, fervilhava no microscópico clube Bosun’s Locker, em Fulham. Porém, a pálida musa que, um atrás do outro, foi despedaçando corações no pequeno oásis folk, a partir de determinado ponto, sentiu-se desconfortável com o colectivismo instituido: "Tocar com toda a gente, ao mesmo tempo, tornava tudo demasiado homogéneo. Tinha de fazer coisas diferentes. Senti que a minha música estava a ficar igual à de todos os outros e queria que, para mim, ela fosse especial. Não era capaz de funcionar dentro de um gang, tinha um grande ego. Desejava ser única". (segue para aqui)


 

(clicar na imagem para ampliar; via S+V)
Joni Mitchell - "Amelia"

(ver aqui)