31 January 2023

Hildegard von Bingen - Symphonia armonie celestium revelationum (Sinfonye)
 
(sequência daqui) Para Neil Young, porém, tudo fora simples e confortável. As canções que, a 19 de Janeiro de 1971, apresentara, a solo, no Massey Hall, de Toronto, justificando-se – “Escrevi tantas canções novas que não tenho outro remédio senão começar a canta-las” –, sob a orientação de Glazer e do co-produtor Jack Nitzsche, acharam o melhor caminho sem a ocorrência de quaisquer sobressaltos: Harvest foi muito fácil. Tudo aconteceu muito rapidamente. Como se se tratasse de uma coisa acidental. Não andava à procura do som de Nashville, aqueles eram apenas os músicos que estavam ali à mão. Pegaram nas minhas canções e tocaram-nas. Chegaram, gravaram e foram-se embora. Como se faz em Nashville”

Registado entre Janeiro e Setembro de 1971 no celeiro do Broken Arrow Ranch – Barn, publicado no início do ano passado, voltaria a ter lugar num celeiro de Telluride, no Colorado, recuperado por Young –, nos Quadraphonic Sound Studios, de Nashville, no Royce Hall da UCLA, em Los Angeles, e, em Londres, com a London Symphony Orchestra dirigida por Jack Nitzsche, Harvest era também uma demonstração de como as relações entre os quatro Crosby Stills Nash & Young – um ano após a separação do grupo – não se encontravam ainda irremediavelmente comprometidas: David Crosby cantaria em "Are You Ready For The Country?" e "Alabama", Stephen Stills em "Alabama" e "Words" e Graham Nash em "Words" e "Are You Ready For The Country?", aos quais se juntariam James Taylor e Linda Ronstadt em "Heart Of Gold" e "Old Man". Mesmo as contrariedades mais indesejáveis, Neil Young parecia posuir poderes para as fazer jogar a seu favor. Tal como a poliomielite que contraíra em criança lhe condicionara a mobilidade do braço esquerdo, oferecendo-lhe, contudo, a possibilidade de se transformar num incandescente guitarrista eléctrico mas – abençoadamente! – incapaz de malabarismos circenses, durante a criação de Harvest, debatera-se com problemas na coluna vertebral que o obrigaram a intervenção cirúrgica e ao uso de uma cinta ortopédica. Como mais tarde explicaria à “Rolling Stone”, “Gravei praticamente todo o álbum com a cinta. Foi uma das razões para aquela sonoridade mais suave. Fisicamente, não conseguia pegar numa guitarra eléctrica”.
Boas notícias (para variar)

28 January 2023

Neil Young - Harvest Time (Welcome to my farm)
 
(sequência daqui) Quem se encontrava no interior do celeiro do Broken Arrow Ranch de Neil, na Califórnia (visível no video Harvest Time que, juntamente com outro de um concerto a solo na BBC em 1971, acompanha a reedição comemorativa do meio século), eram os, por ele baptizados, Stray Gators – Ben Keith ("pedal steel guitar"), Tim Drummond (baixo), Kenny Buttrey (bateria) –, ratazanas de estúdio que, após um encontro fortuito de Young, em Nashville, com o produtor Elliot Mazer (acabado de montar os Quadraphonic Sound Studios), este lhe propusera como cúmplices para o sucessor de After The Gold Rush (1970). 
 
 
Buttrey e Drummond haviam tocado com Bob Dylan em Nashville Skyline e Blonde On Blonde o que poderá ter sido o motivo por que, apesar de prestar homenagem a Young, Dylan sempre encarou uma das canções de Harvest, "Heart Of Gold", como uma espinha na garganta.: “A única vez que me incomodou ser confundido com outra pessoa foi quando eu vivia em Phoenix, no Arizona, por volta de 1972, e a canção que se escutava a toda a hora era "Heart Of Gold". Odiava-a quando a ouvia no rádio. Sempre gostei de Neil Young mas aborrecia-me ouvi-la e dar comigo a pensar ‘Merda, sou eu! Se soa como eu, deveria ser eu’. E ali estava, algures no deserto, a tentar acalmar-me um pouco... Nova Iorque era um sítio pesado. Woodstock era ainda pior, com pessoas a viver nas árvores, no exterior da minha casa, fãs a bater-me à porta, automóveis a perseguir-me pela escuridão nas estradas da montanha. Precisava de um sítio tranquilo para descansar, esquecer-me das coisas e de mim. Mas, ali tão longe, bastava ligar o rádio e lá estava eu... mas não era eu. Parecia que alguém me tinha roubado e fugido com o que era meu. Nunca ultrapassei isso”, confessaria ele à “Spin”, em 1985. (segue para aqui)
Concorrência para o Marselfie

27 January 2023

É preciso reconhecer o que este episódio do palcoaltar da JMJ tem de absolutamente maravilhoso: durante dois dias, nunca as palavras "religião", "fé" e "catolicismo"/"cristianismo" foram pronunciadas - o que se discutiu (como deve ser em tudo o que diz respeito à Vaticano S.A.) foram investimentos, orçamentos, negócios, ajustes directos e maroscas afins. Muito bem!
 
Edit (19:59) - ... e, neste remoínho de notícias do submundo descerebrado, não poderia faltar mais um episódio de faca e alguidar no covil do neo-facho
Gaye Su Akyol - "Mendilimin Yeşili"

26 January 2023

Estão a ver? O Marselfie apoiaria integralmente esta alternativa!

COMO UMA COISA ACIDENTAL 

Sonoros mugidos de vacas sonolentas a pastar enquanto um jipe, serpenteando pelo meio do campo, se aproxima de um celeiro perdido na paisagem. Os dois ocupantes param e dirigem-se para o interior do celeiro. Um deles é Neil Young, não ainda com o actual aspecto de Cro-Magnon idoso embora, já nessa altura, em 1971, não fosse impossível antevê-lo. Ele próprio, hoje, não parece muito seguro da sua idade. Falando a propósito da reedição de Harvest em curso, diz: “Foi um álbum importante para mim. Há 50 anos, tinha 24, talvez 23 anos, e esse álbum marcou uma grande diferença na minha vida”. Na verdade tinha 26 anos (nasceu em Novembro de 1945, o disco foi gravado em 1971 e publicado em Fevereiro de 1972) e, se também afirma que “é fantástico que tenha resistido tão bem ao tempo”, esse é outro assunto acerca do qual a sua opinião não foi constante: nas "liner notes" da compilação Decade (1977) classificava-o como “uma aberração comercial”. (daqui; segue para aqui)

Storm the Palace - "Portuguese Lullaby"

25 January 2023

Liraz - "Age Ye Rooz"

Por estas e por outras é que o pessoal perde a fé... então, não bastava uma tendazinha modesta onde o sumo-patífice, com a colaboração de deusnossenhor, faria umas cenas com pães, peixes e coiso, dava um pulinho para dançar o vira sobre as águas do Tejo, sorteava dez padrecos que teriam o privilégio de ficar em recolhimento com jovenzinhos impúberes e, no final, ressuscitava (à distância) meia dúzia de mortos das últimas filas do parlamento?...

Edit (15:52) - "Potenciando o investimento para o futuro", parece considerar-se já a possibilidade de, após o show do sumo-patífice, se organizar um gigantesco Salão Erótico de Lisboa sob o alto patrocínio de Santa Maria Madalena

24 January 2023

A assombrosa criatura Arroja, micro-organismo acolhido pelo Chaga, mostra-se em todo o seu esplendor
Macie Stewart on Audiotree Live

(ver aqui)
Radicais livres (XCI)

(ver aqui)
 
(sequência daqui) E, confessando ser, desde sempre, apaixonada por histórias “de dragões, castelos encantados e bruxas más”, conta que devorou tudo, de contos de fadas clássicos a Ursula Le Guin: “Vivi toda a minha infância, numa ininterrupta fantasia de heróis épicos em paisagens mágicas, nas margens da Water Of Leith, perto de Edimburgo”. Reparemos também agora no espectro de Angela Carter que por aqui. paira, tal como (em "Frequencies To Victory") o de Hedy Lamarr – cintilante beldade de Hollywood mas, igualmente, cientista inventora de um dispositivo capaz de alterar as frequências dos sinais de rádio impedindo os radares nazis de descodificarem mensagens durante a Segunda Guerra Mundial –, fertilizando 15 canções que, em La Bête Blanche, deambulam entre a folk, estridências punk, Kate Bush, Steeleye Span ou a memória dos imperdoavelmente ignotos Spriguns. Todas, de forma diversa e sob ângulos vários, retratando apenas as mais aptas a passar num critério de avaliação: “She’s a witch, she’s a witch, from her tail to her tits”.
, uma espécie de sistema de comunicações secreto que

22 January 2023

(1º ANO A SEGUIR AO) ANO DO TIGRE (CLXVI) ... ou será o ano do gato?

ININTERRUPTA FANTASIA

Violette Nozière, prostituta ocasional, modelo fotográfico de nus, musa e heroína dos surrealistas, acusada, aos 18 anos, em 1934, de matar o pai que dela abusara sexualmente. Lizzie Borden, suspeita do assassínato a golpes de machado, em 1893, no Massachusetts, do pai e da madrasta. Tillie Klimek, assassina em série de Chicago, no início do século XX. Madeleine Smith, "socialite" de Glasgow do século XIX, julgada pelo homicído por envenenamento do ex-namorado. “Ainda que não tenha sido uma decisão consciente, em "She Knows", acabámos, por ordená-las numa graduação decrescente de empatia, a partir do que recolhemos no podcast acerca de mulheres históricas controversas – “Demons & Dames” – de Sarah Worley-Hill”, explica Sophie Dodds (guitarra, autoharp e "field recordings"), com Reuben Taylor (teclados), Willa Bews (baixo, gaita de foles, flauta), Jon Bews (violino) e Alberto Bravo (bateria), motor criativo do quinteto Storm The Palace. (daqui; segue para aqui)

"She Knows"

20 January 2023

Gaye Su Akyol - "Meftunum Sana"

"Defeat"
 
(sequência daqui) “Não sabia quem era nem como soaria individualmente. Flutuava sem direcção e sentia que muitas das minhas escolhas não eram feitas para mim mas em função de com quem eu colaborava”. Mouth Full Of Glass, primeiro album a solo, mostra-a, enfim, como ela (ou uma parte dela) é: uma invulgar praticante da canção como lugar de invenção sonora permanente, algures entre os vestígios da folk e a memória de Caetano Veloso e do Beck de Sea Change, dispersos por entre arranjos de cordas e sopros tais como Debussy ou Ravel os escreveriam em 2022. E, quando ela diz que a perfeição não lhe interessa, não acreditem.
David Crosby (1941-2023)

18 January 2023

LUGAR DE INVENÇÃO
Há dois anos, na qualidade de metade do duo (com Sima Cunningham), Ohmme - hoje, Finom -, Macie Stewart, a propósito da publicação de Fantasize Your Ghost, explicava como um concerto de Marc Ribot no “Constellation”, de Chicago, lhes tinha transformado por completo a forma como encaravam a música: “Não fazia a mais pequena ideia de que podia tocar-se guitarra assim... Foi o clique. Estávamos um bocado nervosas com a ideia mas também sabíamos que tínhamos conhecimentos de música suficientes que nos permitiam lidar com algo que nos era tão estranho e ser capazes de avaliar se o que faríamos valia a pena ou não prestava”. Não poderia ter mais razão: da mui improvável articulação de perfeitíssimas harmonias vocais com fórmulas como “tratar o feedback como um anel de fumo a que damos forma e expandimos” resultaria um dos mais surpreendentes álbuns de 2020. Para Macie, contudo, havia algo que permanecia por explorar: ela, criatura de formação clássica desde os 3 anos, mas também parte activíssima da cena experimental/"improv" de Chicago, próxima de gente como Claire Rousay, Weather Station, Lia Kohl ou Ken Vandermark, reconhecia que, no interior das comunidades musicais, a “polinização cruzada” era indispensável mas que isso a impedira de se conhecer a ela mesma. (daqui; segue para aqui)
 
Não, não têm! Podem fazer 
o que quiserem (olhem para elas) 
e como quiserem!

17 January 2023

Lou Reed - Words & Music, May 1965

(daqui; álbum integral aqui)
... é... ... mesmo... ... ... a... ... ... ... universidade... ... ... ... ... Fernando Pessoa?!!!... ... ... ... ... ...


“As if shells hit language
the debris from language
may look like poems 
But they are not
This is no poetry too
Poetry is in Kharkiv
volunteering for the army”  
(Victoria Amelina)

16 January 2023

Gina Lollobrigida (1927-2023)

Solomon and Sheba (Real. King Vidor, 1959)
Dry Cleaning at Primavera Sound 2022

Gaye Su Akyol - "Develerle Yaşıyorum"

Polytope de Cluny 1972 1974
 
(sequência daqui) Da série dos Polytopes – criações espaciais que estabeleciam o diálogo entre som, luz, cor e arquitectura durante as apresentações ao vivo, antecipando o futuro conceito de multimedia – a Metastasis (1953/1954), para orquestra, na qual cada músico executa partes independentes, Terretektorh (1966), que buscava a espacialização do som distribuindo os músicos por entre o público, ou Jonchaies (1977) onde o silvo melódico inicial se encaminha para sucessivos blocos de estridente caos sonoro produzido por 109 músicos, a música avassaladoramente física de Iannis Xenakis contém alguns dos momentos mais assombrosamente brutais do século XX. Sobre ela, diria o ateu Xenakis: “O homem é uno, indivisível e total. Pensa com o ventre e sente com a mente. Gostaria de propor o que, para mim, cobre o termo ‘música’: um ascetismo místico (mas ateu)...” Em exibição no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian até 27 de Março de 2023, a exposição Révolutions Xenakis oferece-nos a oportunidade de, sob diversos ângulos, no ano do seu centenário, contactar directamente com os instrumentos de trabalho de Xenakis – partituras, gráficos, aproximações à experiência dos Polytopes, projectos de arquitectura – e, por aí, entender de modo mais próximo a sua viagem singular pela música contemporânea.

13 January 2023

Concret PH - a musique concrète piece by Iannis Xenakis, originally created for the Philips Pavilion (designed by Xenakis as Le Corbusier's assistant) at the Expo 58  

(sequência daqui) Enquanto colaborava com Le Corbusier, estudava harmonia e contraponto e, em pleno palco dos grandes confrontos entre as luminárias da música da época, ia procurando quem lhe pudesse servir de ponto de apoio na descoberta da sua própria via. Nadia Boulanger rejeitou-o, Arthur Honegger franziu o nariz ao reparar no seu uso de oitavas e quintas paralelas, apenas Olivier Messiaen o acolheu. Como este recordaria depois “Apercebi-me imediatamente que ele não era como os outros. Tinha uma inteligência superior. Fiz com ele uma coisa horrível que não deverei fazer com mais nenhum outro aluno pois penso que é necessário estudar harmonia e contraponto. Mas este era um homem tão fora do vulgar que eu disse-lhe ‘Você tem quase 30 anos, tem a grande sorte de ser grego, de ser arquitecto e de ter estudado matemática. Tire partido destas coisas. Use-as na sua música’”.

Voyage Absolu Des Unari Vers Andromède

Para Xenakis que se lamentava de “ter nascido demasiado tarde e ter perdido dois milénios”, isso foi como um livre-trânsito que o autorizou a investigar (sem o adoptar) o serialismo, mas também a estudar a utilização de modelos matemáticos em música: processos estocásticos, teoria dos jogos, a teoria cinética dos gazes de Maxwell-Boltzmann, a distribuição dos pontos num plano, a álgebra de Boole, a distribuição Gaussiana, as cadeias de Markov, o movimento Browniano das partículas e a sequência de Fibonacci, assim como a música electrónica. Desenhou espaços para acolher músicas específicas e música para espaços pré-determinados. E, se recusou a ideia que nele apenas via um matemático que se envolvera com a música, também punha reticências a interpretações descabidamente políticas da sua música: quando, durante os motins do Maio de 68, em Paris, uma faixa onde se lia “Abaixo Gounod! Viva Xenakis!” foi dependurada nas janelas do conservatório, numa entrevista televisiva, fez questão de afirmar “Não se trata apenas de sons e música, é necessária uma transformação das pessoas também”. (Révolutions Xenakis - 03/12/2022 - 27/03/2023, Galeria de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian; segue para aqui)

11 January 2023

LIMPAR O PÓ AOS ARQUIVOS (LXXIX)

(com a indispensável colaboração do R & R)

(clicar na imagem para ampliar)

"Amanhã É Sempre Longe Demais" (álbum integral aqui)

Pithoprakta - Luxembourg Philharmonic Orchestra (dir. Arturo Tamayo)

(sequência daqui) Quando, em 1947, o governo grego começou a prender antigos elementos da resistência, Xenakis, via Itália e com um passaporte falso, fugiu para Paris (pelo que seria condenado à morte pelas autoridades gregas, pena apenas anulada com a queda da junta militar fascista em 1974). Chegaria a Paris a 11 de Novembro de 1947, com uma consciência intranquila e pesada: “Durante anos, vivi atormentado pela culpa de ter abandonado o país pelo qual tinha lutado. Deixara para trás os meus amigos – uns estavam presos, outros tinham sido mortos, outros ainda tinham conseguido fugir. Sentia-me em dívida para com eles e tinha de arranjar forma de pagar essa dívida. Sentia ter uma missão. Tinha de fazer algo importante para reconquistar o direito a viver. Não era apenas uma questão de música – era algo muito mais significativo”. O caminho para saldar essa dívida passaria pelo atelier de arquitectura de Le Corbusier com quem colaboria nos projectos do convento de Sainte Marie de La Tourette, em Lyon, e no Pavilhão da Philips, na Expo 58 de Bruxelas, experiências das quais resultaria um dos pilares do seu pensamento musical: toda a música assentaria em conceitos arquitecturais. (Révolutions Xenakis - 03/12/2022 - 27/03/2023, Galeria de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian; segue para aqui)

09 January 2023

Ennio Morricone - Crime And Dissonance



"Trafelato" (daqui; álbum integral aqui)
XENAKIS REVOLUTION. LE BÂTISSEUR DU SON.

(sequência daqui) A 1 de Janeiro de 1945, um jovem estudante de engenharia (mas também de arquitectura, harmonia, contraponto e grego clássico), militante da juventude comunista e membro do ELAS (Exército Popular de Libertação), durante um combate de rua contra os tanques britânicos, em Atenas, seria atingido por um estilhaço de granada que o deixaria cego do olho esquerdo e com o rosto severamente desfigurado. Muito mais tarde, ele, Iannis Xenakis, confessaria que continuava, incansavelmente, a tentar reproduzir o som que escutara quando o estilhaço lhe explodira no rosto. Não seria o único exemplo de como a memória desses dias iria pairar sobre a sua música.”Imaginem uma grande multidão que se manifesta nas ruas”, dizia, “Cantam palavras de ordem umas a seguir às outras. O ritmo perfeito da última irrompe num enorme aglomerado de gritos caóticos. De repente, o inimigo ataca, ouve-se o disparo de metralhadoras. Depois do inferno visual e sonoro, o que resta é uma calma trovejante, cheia de desespero, poeira e morte”. E, numa perspectiva mais ampla do que a exclusivamente sonora, falava também acerca do “fantástico espectáculo” proporcionado pelos ocupantes alemães quando, numa atmosfera carregada de ecos do silvo das balas e explosões, enormes holofotes militares iluminavam a noite, num aterrador "light show". (Révolutions Xenakis - 03/12/2022 - 27/03/2023, Galeria de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian; segue para aqui)
Continuem a brincar repetidamente com o fogo e depois admirem-se que até uma agremiação de salteadores de estrada, sem saber ler nem escrever, consiga transformar-se num mostrengo descontrolado
 
Edit (11:03) - ... e continuam

06 January 2023

A imensa e inexcedível bravura 
Gaye Su Akyol - Anadolu Ejderi

 
(daqui; álbum integral aqui)
UM ASCETISMO MÍSTICO MAS ATEU

Após 3 anos de violenta ocupação militar pelas tropas alemãs – 7% da população dizimada e um país em ruínas –, a resistência grega que nunca se rendera e fora capaz de libertar dezenas de localidades e estabelecer aí um governo provisório, no final de 1944, iria ter uma amarga surpresa: o exército britânico, à entrada em Atenas aclamado como libertador pela multidão que, empunhando bandeiras gregas, americanas, inglesas e soviéticas, gritava “Viva Churchill! Viva Roosevelt! Viva Estaline!”, por indicação de Winston Churchill – receoso do poder do Partido Comunista e do Exército de Libertação Nacional após o final da guerra –, em aliança com forças pró-nazis, dedicar-se-ia ao extermínio das organizações antifascistas e ao apoio à estratégia de repor o rei da Grécia no poder. Na verdade, de acordo com a partilha da Europa do pós-guerra que fora decidida na Conferência de Moscovo de Outubro de 1944, enquanto Estaline seria premiado com o domínio sobre a Roménia e a Bulgária, a Grécia incluir-se-ia na esfera de influência do Reino Unido. Mas isso não impediria que o país, apenas há semanas libertado do Reich hitleriano, mergulhasse numa sangrenta guerra civil. (daqui; Révolutions Xenakis - 03/12/2022 - 27/03/2023, Galeria de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian; segue para aqui)
 
Iannis Xenakis - Jonchaies (1977) pour grand orchestre (Orchestre philharmonique du Luxembourg, dir. Arturo Tamayo)

05 January 2023

Não estou a inventar, pois não?  
(“o milagre da multiplicação” está muito bem achado...)

Edit (20:35) - Mazobálhamedeus!!!...

Gaye Su Akyol - "Bir Yaralı Kuştum"

(do álbum İstikrarlı Hayal Hakikattir - na íntegra aqui)

04 January 2023

 

"Sen Benim Mağaramsın"
 

(sequência daqui) Ela própria explica como, durante os anos de peste pandémica, encerrada em casa, escreveu para cima de 100 canções: “Senti-me como uma cientista lidando com uma reacção química que expandia os géneros que conhecia: pop-folk da Anatólia, música clássica turca, rock psicadélico turco, pós-punk, jazz, surf, e umas pitadas de disco e de música africana. É um meteoro turco: sangue, suor e lágrimas numa paisagem de cavalos selvagens”. Celebrando o metafórico despertar do dragão adormecido (“Vivemos um clima político no qual a luta pela identidade feminina é revolucionária. A única resistência só pode ser uma acção colectiva”), estas “histórias para o futuro” narradas sobre filigrana psicadélica de guitarra, baixo, bateria, violino, baglama, cümbüş e sazbüş, são o empolgante manifesto de quem se apresenta como “uma nadadora olímpica numa piscina cheia de lâminas”.

03 January 2023

O regime totalitário da informação: 
o funeral de Pelé, o velório do Sumo-Patífice e o Gebo da Pátria na Arábia Saudita, em modo de avalanche "informativa" permanente
 

02 January 2023

Edit (03/01/2023) - ... e, quanto à coleguinha que apanhou o mesmo elevador, é isto

Edit (11:25) - Dez anos depois, tudo igualzinho
Gaye Su Akyol - "Gölgenle Bir Başıma"

(do álbum İstikrarlı Hayal Hakikattir - na íntegra aqui)
UM METEORO TURCO
Sem que se tenha dado muito por isso (sempre melhor do que irromper num foguetório de "hype" que, mal explode, logo se fina), alguma da mais surpreendente música dos últimos anos tem surgido no exterior das habituais coordenadas anglo-americanas. Do óptimo Songs Of Our Mothers (2019), da afegã Elaha Soroor, a Vulture Prince (2021), da saudita-paquistanesa Arooj Aftab, ou a Roya (2022), da israelo-iraniana Liraz – por coincidência (ou não), três mulheres oriundas de quadrantes onde a condição feminina é encarada sob uma perspectiva menos que medieval –, não houve muita outra música que tivesse valido tanto a pena descobrir. Excepções apenas (também no exterior das fronteiras do “império”) para aquela que a selvática invasão russa da Ucrânia nos chamou a atenção – os belíssimos Folknery, DakhaBrakha, Torbán, Dakh Daughters, ou Joryj Kloc – e para o inesgotável universo sonoro da China contemporânea. Abra-se alas, então, para a turca Gaye Su Akyol, autora de Anadolu Ejderi (Dragão da Anatólia). (daqui; segue para aqui)

"İstersen Hiç Başlamasın"