No passado mês de Março, a Warner Music comunicou ao mundo ter sido a primeira editora a assinar contrato com um algoritmo. Criado pela Endel, um “cross-platform audio ecosystem” especializado na produção de “mood music”, o algoritmo, será responsável pela fabricação de 600 faixas para 20 álbums que serão disponibilizados em plataformas de "streaming". Os cinco primeiros já estão acessíveis e orientam-se para o design de atmosferas propícias â concentração e/ou ao relaxamento. Aparentemente, nada de extraordinariamente novo se recordarmos a vetusta historia da "muzak"/"ambient music" ou, há dois anos, Reflection, de Brian Eno, um projecto de música infinitamente auto-gerada a partir de uma série de algoritmos criados em colaboração com Peter Chilvers. A diferença crucial está no facto de, na qualidade de entidade dotada de poderosa Inteligência Artificial (IA), o algoritmo Endel oferecer igualmente “frequências sonoras personalizadas baseadas em dados pessoais dos utilizadores: a hora do dia, o horário de trabalho, a batida cardíaca, a meteorologia ou o padrão de condução automóvel”. Cândida e inquietantemente, Oleg Stavitsky, co-fundador e CEO da Endel, declara: “Desejamos compreender o contexto do seu dia-a-dia e reconfigurar todo o seu ambiente sonoro”. Com a vantagem adicional de exigir “um mínimo de envolvimento humano”, o que, a crer no dilúvio de publicações acerca da iminente devastação no mercado de trabalho – e a selvática violação da privacidade que “The Privacy Project”, do “New York Times”, analisa em profundidade – consequência da IA, tenderá a transformar-se no modus operandi habitual.
Em Platform (2015), Holly Herndon, apropriando-se do ponto de vista do colectivo Metahaven, autor dos videos para esse álbum – “Science fiction politics need science fiction aesthetics” –, propunha “música que reage em termos actuais sem dependência de nenhuma nostalgia do passado”. Quatro anos depois, PROTO dá um largo passo em frente e coloca Herndon literalmente a interagir com Spawn, uma “bebé”-IA treinada para aprender, interpretar, desenvolver e desfigurar a matéria vocal que lhe é proposta e, a seguir, integrar-se simbioticamente no ensemble humano. O que escutamos, então, é um fabuloso exercício de corais desencarnados, polifonias entre o êxtase e a ansiedade, a desagregação e a recomposição, até que, em “Extreme Love”, a interrogação decisiva é, enfim, formulada: “Is this how it feels like to become the mother of the next species?”
Carmina Burana: Gulatorum/Potatorum/Lusorum/Moralia/Divina(Clemencic Consort)
1990 – Nascida na Suiça, de pai arménio/cipriota e mãe suiça, mas a viver em Londres desde os 7 anos, a "twentysomething" Carola Baer pensa em emigrar para a Austrália, com passagem por São Francisco. Chegada à Califórnia, acontece o proverbial episódio “boy meets girl”. Nunca viajará até à Austrália mas, ela que estudara piano até aos 16 anos e vagabundeara por Israel cantando canções de Neil Young e dos Eagles, incendiada pela paixão súbita, começa a compor e o amante-que-nunca-será-nomeado (também músico) grava-a. Aí, o enredo adensa-se: a namorada que ele deixara na Europa regressa aos EUA e Carola, só e abandonada, decide-se por um casamento de conveniência com um candidato de ocasião, apenas motivada pela obtenção do "green card". Numa sequência vertiginosa, o amante-que-nunca-será-nomeado, inopinadamente, reaparece e implora perdão, o que o utilitário consorte não vê com bons olhos. Apanhada entre dois fogos, Carola acaba quase sem abrigo e, em desespero, vê-se obrigada a telefonar à mãe, em Inglaterra, que trata do necessário para a viagem de repatriamento. O guião é apresentado em "fast-forward" mas, na realidade, entre o início e o (provisório) fim, decorreram 17 anos.
2018 – Carola encontrava-se na sala de professores da escola de Surrey onde dá aulas quando o telefone tocou. De Portland, no Oregon, Jed Bindeman – fundador da novíssima "indie" Concentric Circles – comunicava-lhe que, numa loja de venda de artigos para fins de caridade, encontrara uma cassete com o nome dela e um número de contacto que permitira descobrir-lhe o rasto. E, totalmente rendido ao que escutara, propunha-se publicá-la. Ela recordava-se vagamente de, durante o exílio norte-americano, ter entregado a cassete – exemplar único! – a alguém ligado ao cinema que nunca lha devolvera nem dera notícias. Continha as gravações-banda sonora do romance de juventude, acrescentadas de outras posteriores a que, no conjunto, dera o título de “Open Door”. Renomeada The Story of Valerie na edição da Concentric Circles, a sensação que se experimenta é a de, inadvertidamente, estarmos a espiar um diário alheio, espécie de exorcismo transcrito na forma de uma partitura dos Young Marble Giants – voz, dois teclados Yamaha e Casio e "drum machine" – vitaminada por Philip Glass e sucessivamente interpretada por Lisa Gerrard, Nico e Elizabeth Fraser, sobre ecos balcânicos e médio-orientais. Se a vida de Carola Baer dava um filme, a música que o ilustraria está acabada e pronta a usar.
“Such an army of revolution," he said, "twenty-five millions strong, is a thing to make rulers and ruling classes pause and consider. The cry of this army is: 'No quarter! We want all that you possess. We will be content with nothing less than all that you possess. We want in our hands the reins of power and the destiny of mankind. Here are our hands. They are strong hands. We are going to take your governments, your palaces, and all your purpled ease away from you, and in that day you shall work for your bread even as the peasant in the field or the starved and runty clerk in your metropolises. Here are our hands. They are strong hands!'" (Jack London - O Tacão de Ferro - II)
Fiquemos, pois, a saber que existiu um Jurássico Superior português, que o Oceanotitan dantasi era genuinamente tuga, há 145 a 150 milhões de anos, habitava a Bacia Lusitaniana e que foi baptizado como Oceanotitan em homenagem a Björk que, aparentemente, detém o "copyright" da palavra "Oceania"
O Oceanotitan dantasi, minutos antes de vestir um traje de campino
... mas, em matéria de dinossaros orgulhosissimamente lusos, é um fartote...
David Napier, professor de Antropologia Médica no University College de Londres, publicou, em 2003, The Age Of Immunology no qual explorava e denunciava a aterradora ideia – contrabandeada do âmbito médico para as “ciências” sociais – de que, tal como o organismo se defende e sobrevive através da eliminação de corpos estranhos e microorganismos invasivos, o mesmo deveria ocorrer na sociedade expulsando e combatendo tudo o que, há quase 40 anos, Peter Gabriel designava por “not one of us”. Não é preciso estar excessivamente atento ao mundo para nos apercebermos de que, em década e meia, esse horror ideológico – ele, sim, verdadeiramente infecto-contagioso – se converteu em venenosa pandemia com consequências inquietantemente práticas e que exige resposta rápida e intensamente xenófila. Prontos a usar, os Vanishing Twin e o álbum que cita/homageia David Napier, The Age of Immunology, não poderiam constituir melhor e mais concreta terapêutica: oriundos da Bélgica, Japão, Itália, França e EUA, Phil MFU, Susumu Mukai, Valentina Magaletti, Elliott Arndt e Cathy Lucas convergiram para Inglaterra justamente na altura em que se aproximava o referendo do Brexit.
Cantado nos idiomas de origem de cada um deles e gravado em diversas circunstâncias e com recursos pouco vulgares – num iPhone, em palco, na ilha de Krk, na Croácia, num moinho abandonado em Sudbury –, tanto se reclamam do espírito Dada e da Bauhaus, como vasculham os arquivos de "library music" mas também as esquinas menos frequentadas de Jean-Claude Vannier, Morricone e Piero Umiliani, as tangentes funk à BSO sci-fi de Planète Sauvage, o krautrock, ou o psych-jazz astral de Sun Ra. Não é, seguramente, uma coincidência que, neste labirinto, todas as setas apontem indisfarçavelmente na direcção dos mais recentes Stereolab e Broadcast. Os territórios, de facto, intersectam-se mas, neste ensaio sonoro acerca de “um mundo que, a cada dia, se torna mais irreal na sua estranheza e dissimulação, e que, nos constrange a auto-regular a imaginação ao serviço dos poderes” (Cathy Lucas), ponto de partida para uma banda sonora primitiva e futurista sobre a instável realidade e a ambiguidade identitária, o exercício de permanente e aquático "shapeshifting" musical desenrola-se frente a um cenário de exuberantes reflexos e cintilações, utópico e festivo. Como confessa também Lucas, “É um desejo profundo vir a ser, um dia, cidadã da Federação Planetária Unida”.
Em Fevereiro do ano passado, faltavam 8 dias para David Byrne colocar na rua American Utopia, quando, após um post no seu blog em que dava a conhecer os 25 músicos que com ele tinham colaborado, o céu lhe caiu em cima: na caixa de comentários, dezenas de dedos apontavam-lhe o tremendo pecado de, entre os 25, não existir uma única mulher. Dificilmente poderia ter sido escolhido um alvo menos adequado: o álbum anterior (Love This Giant, 2012) havia sido escrito e gravado a quatro mãos com St. Vincent/Annie Clark e Here Lies Love (2010) – uma peça conceptual sobre a figura de Imelda Marcos – registava a participação de duas dezenas de cantoras, de Tori Amos a Natalie Merchant, Sharon Jones ou Shara Worden. Mas (humilde e injustificadamente), Byrne admitiu a terrível falha, pediu desculpa, e garantiu que a disparidade de género era algo que realmente o preocupava. Exactamente o tipo de problemas com que The National não terão de se defrontar agora que I Am Easy To Find, o sucessor de Sleep Well Beast (2017), é publicado: Carin Besser (mulher de Matt Berninger), Pauline de Lassus (alias, Mina Tindle, mulher de Bryce Dessner), Kate Stables (This Is The Kit), Gail Ann Dorsey (ex-baixista de David Bowie, Bryan Ferry, The The, Gang of Four e tutti quanti), Sharon Van Etten, Lisa Hannigan, Mélissa Laveaux e Diane Sorel deverão surgir todas, com destaque variável, no genérico final. E dá-se bastante por isso.
Mas aquilo em que se repara muito também – e que já se pressentia em Sleep Well Beast – é uma espécie de gentrificação da atmosfera mental e criativa da banda que, não por acaso, tem uma correspondência assaz física: I Am Easy To Find foi gravado no Long Pond Studio de Hudson Valley (construído por Aaron Dessner que vive a dois passos, numa quinta do século XVIII), em Upstate New York, um pequeno paraíso rural onde se ouvem os uivos dos coiotes e o coaxar das rãs à beira dos lagos, refúgio dos pintores paisagistas românticos da Hudson River School oitocentista, vizinho da lendária Big Pink da Band, e da comunidade artística e suavemente boémia da acolhedora cidade de Hudson. É o próprio Aaron que, à “Uncut”, estabelece essa relação: “Foi muito importante mudarmo-nos para aqui. Sentimos o legado de todos os artistas que aqui viveram. Divertimo-nos mais, estamos menos tensos e ansiosos. Menos urbanos. Não sei se isso passa necessariamente para a música mas influencia o modo como trabalhamos”. A verdade é que passa, sim. Menos tensos, ansiosos e urbanos é o exacto oposto polar de Alligator (2005) e Boxer (2007). O anti-The National. Laurel Canyon vs. Brooklyn.
Juntemos todas estas peças (e ainda o facto de o realizador Mike Mills – que seria também responsável por um filme de 26 minutos, com Alicia Vikander, complemento visual do disco – ter actuado enquanto produtor heterodoxo) e não será grande ousadia dizer que não se trata verdadeiramente de um álbum dos National mas daquilo a que Aaron chama “a community of voices”. A voz de Matt Berninger cede frequentemente o primeiro plano ou deixa-se afogar no veludo coral das de Gail, Kate, Lisa, Sharon, Pauline, Mélissa, Diane, e do Brooklyn Youth Chorus, os (belíssimos) arranjos de piano, sopros e cordas aconchegam um resignado desassossego (“But I'm learning to lie in the quiet light, while I watch the sky go from black to gray, learning how not to die inside a little every time” ou “Maybe we'll end up the ones who eat chocolate chip pancakes next to a charity swimming pool”) e a tépida "malaise" apenas é perturbada, aqui e ali, pela destrambelhada arritmia da bateria de Bryan Devendorf e por um ou outro raro olhar sobre paisagens menos confortáveis, caso da sublime e quase coheniana "Not in Kansas": “My bedroom is a stranger's gunroom, Ohio's in a downward spiral, can't go back there anymore, since alt-right opium went viral (…) Time has come now to stop being human, time to find a new creature to be, be a fish or a weed or a sparrow, for the Earth has grown tired and all of your time has expired”.
"Pena é que em vez de terem alimentado a canalhada que nos roubou não tivessem andado a produzir mel para oferecer a ursos. Fizessem deles comendadores. Como fizeram a tantos outros ursos. Num Dez de Junho. Teria saído muito mais barato, ter-se-ia podido proteger a natureza e haveria a certeza de que depois de saciados, estes ursos, mesmo sendo comendadores, não iriam para o Parlamento arrotar o mel, rir-se na nossa cara e fugir calçada abaixo das notificações dos agentes de execução"(Um destes dias Marat ressuscita, "wishful thinking" de SAC, ou "la guillotine" - LI, reproduzido com o caveat da exigência de respeito pelo urso)
Triumph of Jean-Paul Marat Carried by the People after his Acquittal by the Revolutionary Tribunal (April 24, 1793) - Original steel engraving drawn by T. Johannot, engraved by C. Colin. 1836
"A maior parte dos nossos missionários veio do Brasil e foi útil já conhecerem os finais das telenovelas que estavam então a passar cá. Quando os portugueses lhes pediam que contassem, eles diziam: 'Conto-lhe se me receber em casa na próxima semana'"(Joaquim Moreira, representante, em Portugal, da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, conhecidos como mórmones - ao "Expresso")
“A música 'underground' deverá estar intrinsecamente ligada a ideias radicais, a uma empatia radical ou não passará de uma pose. Se a música não se relacionar com uma noção maior do bem comum, será suspeita de não ser senão um entretenimento altamente intelectualizado para gente rica. Recusamo-nos a contribuir para esse lamaçal. Na América, o sistema da justiça criminal é a linha da frente do sistema de privação de direitos económicos em que a nação assenta. Sendo todos nós homens brancos – aqueles para cujo benefício o sistema foi construido –, temos de usar esse previlégio para o dedicar a algo maior, às pessoas que o sistema esmaga. A música não é o combate material e físico necessário para mudar as coisas mas contribui para que as pessoas tomem consciência do poder que têm nessa luta”, declara à “Uncut” Jim McHugh, guitarrista dos novaiorquinos Sunwatchers (uma homenagem a "Sun Watcher", do álbum New Grass, de Albert Ayler, 1968), que, juntando as palavras aos actos, fazem reverter o produto da venda das suas gravações para diversas ONG e grupos de abolição e reforma do sistema prisional.
A capa de Illegal Moves, terceiro álbum da banda, procura deixar bem explícitas as intenções: assinada por Scott Lenhardt num estilo gráfico próximo do da “Mad Magazine”, é uma espécie de variação sarcástica sobre a de Sgt. Pepper's, onde uma multidão de figurões (de Nixon a Margaret Thatcher e ao palhaço Ronald McDonald, com os quatro elementos do grupo incluidos), assiste ao eufórico esquartejamento do Tio Sam pelo boneco da Kool-Aid. De facto, para um grupo que se apresenta como “o martelo que esmagará o capitalismo” mas cria apenas música instrumental, dir-se-ia que o apoio visual seria imprescindível. Nem tanto assim: reivindicando-se da herança do free-jazz (Archie Shepp, Ayler, Pharoah Sanders) e dos Coltrane, Alice e John, mas também de Beefheart, Zappa, do punk e do psicadelismo mais ácido, o programa – ideologicamente irmão dos Gnod de Just Say No To The Psycho Right-Wing Capitalist Fascist Industrial Death Machine (2017) – encara a mudança enquanto explosão simultânea de “sonic catharsis and revolution”. Na fornalha, em acesos combates de guitarra, sax, baixo e bateria, arde, então, o espectro dos Stooges mas também "Ptah, The El Daoud", de Alice Coltrane – algo como a banda sonora de um "western spaghetti" alimentado a "phin" tailandês e "saz" turco, em atmosfera "free-form" – ou o exotismo libertário dos East of Eden, combustíveis insurrreccionais de eleição.