29 November 2021

DO JUKEBOX
 
 
No universo paralelo do cinema de Wes Anderson, há (entre várias outras) duas particularidades que o definem: a obsessão pela simetria visual e uma concepção da banda sonora já designada como “crate-digger soundtrack”. Isto é, composta a partir do tipo de música e canções que tendem a ser apenas descobertas nos caixotes de feira-da-ladra e lojas de segunda mão, ponto de vista próximo mas não exactamente idêntico ao que costuma orientar Quentin Tarantino na mesma missão: se este tende a propor a redenção do mais obscuro e (muitas vezes, injustamente) desclassificado “kitsch”, Anderson, com a indispensável colaboração do farejador Randall Poster, valoriza o “vintage” de fina casta. Em Hotel Chevalier, prequela de The Darjeeling Limited (2007), "Where Do You Go To (My Lovely)?", do meteórico Peter Sarstedt, ocupava todo o espaço sonoro e, no próprio Darjeeling, reapareceria por diversas vezes, na companhia de canções dos Kinks, Rolling Stones e Joe Dassin. Mas, em toda a restante filmografia, lado a lado com peças do reportório clássico e música original de Alexandre Desplat e Mark Mothersbaugh (Devo), é um desfile contínuo de memórias dos Proclaimers, Ramones, Velvet Underground, Elliot Smith, Zombies, Sigur Rós, The Creation, Chad & Jeremy, Cat Stevens, The Who, Yves Montand, John Lennon, Faces, West Coast Pop Art Experimental Band, Nico, Dylan, Clash, Devo, Stooges, Scott Walker, Beach Boys, Charles Aznavour, e até de versões de David Bowie por Seu Jorge.(daqui; segue para aqui)
 
Jarvis Cocker - "Aline" (real. Wes Anderson)
Public Service Broadcasting - The Race For Space

(álbum integral aqui; ver também aqui)
 

(com a colaboração do correspondente do PdC em Pequim)
Para que conste: oficialmente facho

25 November 2021

... e, desta vez, a culpa não é do Aborto Ortográfico, é mesmo alfabetização insuficiente

O belísimo "Lisboa de Antigamente" já tem lugar cativo na coluna "Blogs & Etc", aqui ao lado; mas a repescagem desta evocação dos duelos na Estrada da Ameixoeira poderia servir de sugestão para resolver de forma rápida, expedita (e bem mais emocionante!) muitas das bocejantes quezílias que engarrafam telejornais

Adia Victoria Live at Mississippi Studios PDX Announcing new French Pop EP (2017)

"I wanted this EP to take on a more eerie feel. Instead of the imagined dream pop girl wishing for her man to come home I reimagined the lyrics as sung by a lover scorned but still love sick and obsessed. I wanted to keep the timeless feel of these songs while breathing into them a bit of modernity; sharpen the edges a bit. What if ‘Parlez Moi de Lui’ were more of a hazey, trip out love letter from a woman still haunted by lost love. What if her in deranged mind her man still danced in and out of sight, just out of touch? I wanted to inject ‘Laissez Tomber Les Filles’ with a bit of the anger and danger I felt as a new political era descended on our country. This session would prove to be therapeutic in channeling my frustration with the current political landscape into powerful songs sung by iconic, emotional women. This EP was a way express all these feelings in a tangible way. There is so much emotionality to women that is often policed. This project gave me the chance to shake off those restrictions, free myself from my own mother tongue and speak in universal themes that flow beyond the borders of language.”

(EP integral aqui)
 
(sequência daqui) Gravado no primeiro semestre deste ano, num estúdio montado em casa de Caetano, no Rio de Janeiro, com produção dele próprio e de Lucas Nunes (da banda Dônica), Meu Coco interrompe o silêncio de 9 anos após Abraçaço com 12 canções, pela primeira vez todas da sua autoria. Como se isso fosse necessário, à “Splash” faz questão de reafirmar “Sou tropicalista”. Mas, se dúvidas houvesse, bastaria escutar a lindíssima "Ciclâmen do Líbano" (que ele pediu a Morelenbaum que trajasse de “freaseado do Médio Oriente salpicado de Webern” – na verdade, mais médio-oriental do que Webern), a pulsação submersa de "Anjos Tronchos" (“Palhaços líderes brotaram macabros, no império e nos seus vastos quintais“), a provocação baiana de "Pardo" (“Nêgo, seu rosa é mais rosa que o rosa da mais rosa rosa”) ou "Você-Você", fado da “AmericÁfrica, entre miséria e mágica” (em dueto com Carminho e com o bandolim de Hamilton de Holanda travestido de guitarra portuguesa), para que a sua natureza profunda imediatamente se revelasse.

24 November 2021

Ou como, em muito pouco tempo, se passa de "heróis da linha da frente" a queixinhas falhos de "resiliência" (afinal, o soba da tribo já lhes tinha chamado "cobardes"...)

É sempre um privilégio desfrutar das pérolas de sabedoria do inefável Massena: espicaçado a reflectir sobre o momento em que "tal como a música muda de tom, a liderança foi desafiada", o maestro que "dá conferências" a empresas explica que "lhes apresenta como uma orquestra se implementa no terreno" e que "uma orquestra tem várias secções, vários departamentos" nos quais "existem micro-sociedades" (aqui até 1'46"); aguardam-se ansiosamente novos contributos acerca do departamento das percussões e da micro-sociedade do triângulo
Études Sur Paris (real. André Sauvage; música Jeff Mills; 1928)

(ver aqui)
Umatemporada de Tweedledee & Tweedledum - mas, mesmo mudando de Tweedledum, cada uma é mais fraquinha que a anterior...

22 November 2021

Haiku Salut - "Los Elefantes"

(sequência daqui) Ao “Globo”, Caetano explica-se bem: “A canção 'Meu coco', que dá nome ao disco, traz essa afirmação da pluralidade brasileira, da nossa rica e confusa beleza. Ou seja, é tudo o que passa na minha cabeça. Uma mirada atual sobre temas recorrentes em meu trabalho: nomes, fantasias que esboçam uma decifração do Brasil”. E, a propósito de "Não Vou Deixar" – funk atmosférico ritmicamente transviado com solo de violoncelo de Jacques Morelenbaum no meio –, adianta: “Nessa música digo: 'Não vou deixar você esculachar com a nossa história , é muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor e muita glória’. Ou seja, a força da canção popular brasileira, do que o Brasil tem de bonito, se sobrepõe e sobreporá aos horrores por que a gente vem passando. Jamais diria que é dedicada a Bolsonaro. O presidente que nós temos é o pior que poderíamos imaginar. Mas ele é parte da cãimbra que nosso corpo histórico-social sofre, aquilo está dito a pessoas como ele, a ele, ao tipo de poder que representa”. (segue para aqui)

19 November 2021

DECIFRAÇÃO DO BRASIL

“Somos mulatos híbridos e mamelucos, e muito mais cafuzos do que tudo mais, o português é o negro dentre as eurolínguas, superaremos cãibras, furúnculos, ínguas, com Naras, Bethânias e Elis, faremos mundo feliz, únicos vários iguais, Rio Canaveses (...) católicos de axé e neopetencostais, nação grande demais para que alguém engula, avisa aos navegantes, bandeira da paz, ninguém mexa jamais, ninguém roça e nem bula, João Gilberto falou e no meu coco ficou, 'quem é, quem és e quem sou? somos chineses'”. Três minutos e nove segundos após o início de Meu Coco (álbum e canção), concluído o manifesto erguido sobre a brigada de percussões de Marcio Victor (timbal, talk drums, atabaque, derbak, shake, balde, tamborim, aro, alfaia e surdo) e rasgado pelo labiríntico arranjo de sopros de Thiago Amud, Caetano Veloso não poderia deixar tudo mais transparentemente nítido: meio século depois, a explosão tropicalista permanece absolutamente actual e, se calhar, inesperadamente necessária. O precursor Oswald de Andrade já falava de como os desbravadores do futuro se achavam “perdidos como chineses na genealogia das ideias” e, no “Manifesto Antropófago” (1928), não sonhava sequer que o que propunha – “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (…) Tupi or not tupi, that is the question. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. (…) Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direcção do homem. (…) A idade do ouro anunciada pela América” –, com 100 anos de antecipação, fornecia munições contra todos os tribalismos identitaristas e patrulhas de vigilância da “apropriação cultural”. (daqui; segue para aqui)

Supermercados e Vaticano S.A., a mesma luta! (evidentemente)
 
Nota: as "missas do parto" festejam a iminente desova da catraia do imaculado pipi (personagem de ficção localmente muito apreciada)

17 November 2021

Douro, Faina Fluvial - real. Manoel de Oliveira (1931)

(ver aqui)

(sequência daqui) O método anterior de criação a partir de "samples" de documentários do British Film Institute e materiais educacionais e de propaganda que tinham sido a coluna vertebral de Inform-Educate-Entertain (2013), The Race For Space (2015) e do óptimo Every Valley (2017) foi, agora, substituído por jornadas de captura de sonoridades de rua, destinadas a serem articuladas em modo Bowie/Eno/Krautrock com as contribuições de Blixa Bargeld, Andreya Casablanca e da norueguesa EERA, no lendário Hansa Tonstudio. Todos os anjos e demónios que habitam a Meistersaal desceram sobre Bright Magic.
Sobre o Florimelo, estamos de acordo; nem sequer referir o Laranja (Mais Laranja Não Há) é que é intolerável!

14 November 2021

OUTRO FILME PARA OS OUVIDOS


A "city symphony", um género cinematográfico experimental surgido nos anos 20 do século passado, pretendia, através do ritmo de uma montagem fragmentada e caleidoscópica, mostrar a vibração das grandes cidades, não como cenário ou pano de fundo mas enquanto personagem principal. Documentários poéticos de uma quase abstracção animada pela câmara, Man With A Movie Camera (1929), de Dziga Vertov, Manhatta (1921), de Paul Strand e Charles Sheeler, Douro, Faina Fluvial (1931), de Manoel de Oliveira, ou Berlin: Die Sinfonie der Großstadt (1927), de Walter Ruttmann, eram registos vertiginosos de “a day in the life” convertidos em música visual. Ruttmann, figura importante da vanguarda artística alemã da época, seria também o autor de Wochenende (1930), colagem de sons recolhidos pelas ruas de Berlim que anteciparia a “musique concrète” e que ele descreveria como “uma sinfonia de sons, fragmentos de fala e silêncio tecidos num poema”, algo como um “filme para os ouvidos”, isto é, o oposto das "city symphonies". Quase um século depois, foi no rasto de Ruttmann – e de David Bowie, Marlene Dietrich, e Anita Berber, actriz, bailarina, “Deusa da Noite” e “Princesa do Deboche” da República de Weimar (e do seu ácido cronista Kurt Tucholsky) – que J Wilgoose, Esq., motor criativo dos Public Service Broadcasting, se mudou para Berlim durante nove meses. (daqui; segue para aqui)
 
"Der Rhythmus der Maschinen" [ft. Blixa Bargeld]

09 November 2021

Era uma coisa bem feita, profissional, ambiciosa... mas a inveja, oh a inveja!... de quem não suporta o sucesso alheio...
VINTAGE (DXCI)

The West Coast Pop Art Experimental Band - "I Won't Hurt You"

"You Was Born To Die" (feat. Kyshona, Margo Price, & Jason Isbell)
 
(sequência daqui) Agora, com A Southern Gothic – variação negro-americana sobre o género literário que os branquíssimos Faulkner e Flannery O’Connor brilhantemente praticaram –, Victoria (“singer-songwriter, blues poet, folklorist, historian, and sociologist“) alarga o horizonte: “Não me interessa a História contada sob o ponto de vista dos conquistadores. Interessam-me as pessoas cujas histórias foram silenciadas. Gostaria que a minha música fizesse reflectir sobre a forma como caminhamos pelo mundo e como o mundo caminha através de nós”. Escoltada nessa reflexão por T-Bone Burnett (produtor imaculado), Mason Hickman, Margo Price, Jason Isbell, Kyshona e Matt Berninger (The National), Southern Gothic é um perfeitíssimo mosaico de farrapos de História ("Magnolia Blues"), hipnótica pop de câmara ("Please Come Down") e "murder ballads" em registo "trip hop" ("Deep Water Blues"). E o infinitamente mais que exige ser descoberto.

06 November 2021

Afinal, parece que 
lhe falta peso político
 COMO CAMINHAMOS PELO MUNDO E 
COMO O MUNDO CAMINHA ATRAVÉS DE NÓS
 

Como escapa uma miúda negra, da Carolina do Sul, à claustrofobia de uma família Adventista do 7º Dia? Dedica-se a estudar tuba. E oboé. Toca na “marching band” da escola. Às escondidas, vai escutando Nirvana, Miles Davis, Fiona Apple e Outkast. Mas foi apenas quando, aos 21 anos, Adia Victoria conseguiu comprar uma guitarra, que as portas se lhe abriram: “Nada se passava na minha vida. A guitarra descobriu-me na mesma altura que os blues me encontraram. Senti-me autorizada a contar as histórias de que nunca tinha falado. Foi uma bóia de salvação. Um refúgio. Não sabia como as minhas mãos podiam ser tão inteligentes. Toda a minha relação com o corpo mudou: ele não existia apenas para consumo e prazer dos outros. Existia para que eu pudesse fazer algo com ele, para mim. Sim, foi isso que aprendi com aquela pobre Washburn acústica”. Quando, há dois anos, publicou o impressionante Silences, tinha também escancarado outra porta: “Não acredito em música apolítica. Tomamos posição e comentamos o que se passa no mundo. Toda a música e arte são políticas”. (daqui; segue para aqui)

04 November 2021

Muito mais interessante do que o Rangel e o Marcelo e o Rio e o Melo 
e o Costa e o Chicão:
 
 
Skipper's Alley - "Wild Bill Jones"/"Muireann's Slide"

(ver aqui)
1 - O "hijab" (se voluntariamente usado) é muito bonito
 

3 - Ver a facha Le Pen no papel de "libertadora das mulheres" enquanto táctica anti-islâmica (na verdade, anti-não brancos/não cristãos) deveria fazer pensar.

03 November 2021

Quanta insensibilidade... 
quanta falta de compaixão...
Visionária "joint venture" Portugal-Coreia do Norte!
(sequência daqui) Em estúdio e acompanhado pelo violinista Ultan O’Brien, mas, sobretudo, pelo baterista/compositor Ross Chaney e pelo produtor Brendan Jenkinson, compreende-se melhor por que motivo, quando chamado a confessar as suas referências, numa longuíssima lista, inclui John Martyn, Portishead, Gavin Bryars, Sufjan Stevens, Ewan MacColl, Shirley e Dolly Collins, David Byrne, Steve Reich, Bill Frisell ou Big Thief. Basta escutar "Shallow Brown" – dilacerante "sea-shanty" de navios negreiros que já assombrou June Tabor – a ser devorada por um vórtice electrónico, "My Son Tim" gradualmente estilhaçada em dissonâncias e estridências, "Lovely Joan" em dissolução num labiríntico arranjo de cordas e sopros, o emaranhado novelo de melodias para dois "tin whistles" de "Tralee Gaol" ou o tríptico "Bring Me Home" em irreversível caminhada para uma fantasmagórica abstracção. “Beautiful and strange”, sem dúvida. E absolutamente preciosa.

02 November 2021

Afinal não foi racismo mas só uma tentativa de patriótica vingança contra essa malandragem que quer roubar-nos heróis, feitos e glórias!
A bordo do pasquim direitolas online (publicação de jornalismo político), a "vítima do bloqueio" - intelectual orgânico (de trazer por casa) da peçonha neo-facha -, citando os doutores da Igreja, defende que "a renovação e revitalização do Ocidente no século XXI depende da supressão do clero jornalístico, em particular do jornalista-político" (via DT)