O EDIFÍCIO 6197
Quem olha para “La Trahison des Images” (1929), de René Magritte, vê a representação realista de um cachimbo sobre fundo bege, na base da qual, em caligrafia perfeitamente desenhada, se lê “Ceci n’est pas une pipe” (“Isto não é um cachimbo”). Não se trata de uma manobra de diversão surrealista: tal como um mapa não é o território que representa e (segundo Alan Watts)
“o menu não é a refeição”, a obra de Magritte é apenas a reprodução bidimensional a óleo sobre tela de um objecto tangível, a três dimensões, dotado de textura, peso, cheiro e temperatura. Van Gogh, Cézanne ou Picasso, já haviam usado o cachimbo como elemento simbólico, identitário ou enquanto adereço. Mas foi Magritte – ele que não se impediu de produzir "fakes" de Picasso, Braque, Klee, De Chirico ou Ticiano – quem (jogando ainda com o malicioso duplo sentido de “pipe”, em francês) o transformou em demonstração exemplar de uma ideia: as imagens, a representação artística são uma coisa e a realidade (seja lá isso o que for) é outra.
Não será uma comparação rigorosamente exacta mas, no que à música gravada diz respeito, as "master tapes" (as “matrizes”) são “a realidade”, a insubstituível fonte primária, e tudo o que a partir delas se edifica uma recomposição infinitamente diversa. As “matrizes” preservam tudo o que – publicado ou não –, no estúdio teve lugar: as falhas, o grão das vozes, fragmentos, esboços, a atmosfera do lugar, as múltiplas versões, que, depois, poderão ser pretexto para enciclopédicas reedições (só um exemplo: os 18 CD de
The Cutting Edge 1965-1966: The Bootleg Series Volume 12 – Collector’s Edition, de Dylan), remasterizações, conversões de estéreo para mono e vice-versa, cachimbos que não são cachimbos. No dia 1 de Junho de 2008, um armazém de 2 073 metros quadrados – o edifício 6197 – do Universal Music Group, em Hollywood, foi integralmente destruído por um gigantesco incêndio e com ele arderam centenas de milhar de fitas magnéticas, preciosas "master tapes" da maior editora discográfica mundial, cobrindo todos os géneros musicais, de mais de 800 artistas. Só por si, a catástrofe seria já imensa. Bem pior foi que só 11 anos depois, há semanas, numa extensa
reportagem de Jody Rosen para o “New York Times”, aquilo que os responsáveis do UMG sempre tentaram menorizar e dissimular, tenha sido, enfim, revelado em toda a sua devastadora extensão. Pelo menos,
“René and Georgette Magritte With Their Dog After the War", de Paul Simon, não pertencente ao espólio do UMG, salvou-se.