O QUE É A SALVAÇÃO?
"Um mês antes de iniciar os ensaios para uma digressão baseada na sua música para o cinema, Ryuichi Sakamoto acordou uma noite no meio de um sonho. Nessa mesma noite, guiado por aquilo que sonhara, começou a compôr "Untitled 01" que acabaria por apresentar na sua digressão em vez das bandas sonoras previstas. A peça era inspirada pelas notícias sobre a fome em África e os massacres no Ruanda e Zaire. Durante um mês, trabalhando vinte horas por dia, compôs a mais extensa obra sinfónica da sua carreira, da qual escreveu a última nota na manhã de 25 de Dezembro de 96". Esta é a versão oficial acerca da génese da música que se inclui no novo CD, Discord, de Ryuichi Sakamoto e que, além de uma componente multimedia para CD-ROM, no último andamento de "Untitled 01", reune as vozes de David Byrne, Laurie Anderson, Patti Smith, Bernardo Bertolucci, David Torn e DJ Spooky respondendo à pergunta "O que é a salvação?". A versão do próprio autor deu-a Sakamoto durante um dia da semana passada em que parou em Lisboa.
Para além da música que tem escrito para o cinema, "Untitled 01", incluido no CD Discord, é a sua primeira peça para orquestra?
Houve um CD que gravei há cerca de dez anos chamado Playing The Orchestra e que também utilizava um vocabulário sinfónico. Mas foi o único.
Quando compõe para o formato sinfónico, tem referências da história da música ocidental que, de alguma forma, lhe sirvam de modelo?
Sim, tenho-as todas na cabeça. Vêm daquilo que escuto desde a adolescência. Gostava que alguém fosse capaz de analisar esta obra e me dissesse que esta frase provém de Bach e aquela se inspirou em Debussy... Na realidade, é uma mistura de imensas influências: Bach, Beethoven, Brahms, Schumann, Debussy, Ravel, Wagner, Mahler, Bartók, Strawinsky, Messiaen, Boulez, Stockhausen, Philip Glass, Steve Reich, Górecki, Arvo Pärt e muitos outros de que agora não me recordo. Para esta peça, tive muito presentes a Quinta Sinfonia de Mahler e o Parsifal de Wagner.
"Untitled 01" representa a tradução musical da sua reacção emocional em relação às recentes tragédias do Ruanda e do Zaire. Acredita que a música (em particular, a música instrumental) é capaz de exprimir sentimentos tão concretos?
Depende. A música não é um utensílio nem uma máquina capaz de interpretar o mundo real. Tem o seu próprio universo mas contém também uma gramática e uma sintaxe das emoções. De qualquer modo, em geral, não gosto de usar a música como veículo de propaganda política.
Como é que os títulos dos quatro andamentos - "Grief", "Anger", "Prayer" e "Salvation" - se articulam com o conceito central de Discord?
Discord é o título do CD que, aliás, só lhe atribuí depois de concluida a música. E dei-lhe esse título porque inclui diversos estilos musicais e se socorre de media diferentes. Escrevi a peça andamento por andamento e essas quatro palavras-chave que exprimem vários estados de espírito surgiram-me no mesmo momento de um mesmo dia. A minha grande interrogação era: como podemos salvar-nos uns aos outros? O que significa para nós a salvação? E parecia-me menos importante encontrar uma resposta exacta do que reflectir sobre ela. Quis, então, ouvir a opinião de várias pessoas e inclui-las na música.
E isso ajudou-o a encontrar uma resposta?
Não. Podem existir muitas respostas mas nunca uma só resposta correcta.
Quando fala de salvação, está a pensar em salvação individual ou colectiva?
Depende da forma como cada um encara a pergunta e das respostas que lhe encontra. Pode pensar-se num momento de paz na vida quotidiana, num projecto político, numa solução económica ou industrial. Mas nenhuma, só por si, poderá ser a solução.
"Prayer" e "Salvation" são também palavras com uma forte carga religiosa...
Na história humana, as religiões tentaram igualmente encontrar uma resposta. Mas, também elas, não o conseguiram. Se o tivessem feito não estaríamos mergulhados na crise actual. Mas, embora, não seja religioso, as religiões interessam-me muito. E, no contexto das várias religiões e culturas, o significado de "salvação" também é muito diferente.
Então, a quem é dirigida a sua oração?
É uma pergunta difícil... A verdade é que não acredito em nenhuma religião. Mesmo que o desejasse não seria capaz. As religiões, aliás, sempre foram uma das razões por que as pessoas combateram umas contra as outras. Como poderíamos, assim, acreditar em qualquer delas?
Voltando ao disco, o segundo andamento ("Anger") foi objecto de "remixes" por vários DJ da Ninja Tune. Por que motivo decidiu entregar-lhes essa parcela de uma obra completa?
Foi inteiramente uma decisão deles. Tiveram toda a liberdade para escolher o que quisessem. Já ouvi o resultado e gosto mesmo muito do que ouvi. Retiraram os elementos que desejaram e articularam-nos com batidas de drum'n'bass. Não lhe chamaria uma interpretação da minha música mas algo completamente novo criado a partir do original. Se eu próprio já pratico a ideia de desconstrução no interior da minha música, eles levaram esse conceito ainda mais longe.
Os seus projectos mais recentes voltam a ser música para o cinema em Love Is The Devil (sobre o pintor Francis Bacon) e Snake Eyes, de Brian De Palma. Já estão concluidos?
Acabei de gravar a música para Love Is The Devil e vou trabalhar em Snake Eyes em Fevereiro e Março. Quando ouvir a música para Love Is The Devil vai reparar que é muito diferente da ideia habitual da música para o cinema. Tem bastantes pontos de contacto com o que fazia Stockhausen nos anos 50. Em Snake Eyes, estão à espera que eu escreva no idioma convencional de Hollywood para os filmes de acção mas não sei se me apetece muito concordar com eles...
(1998)