... e, de caminho, fechar a Internet, e as cadeias de televisão e rádio, e queimar os jornais, e substituir as máscaras por mordaças, e imprimir boletins de voto já preenchidos, e, de um modo geral, kimjongunar
"(Charles François) Dumouriez é particularmente severo com o clero, não só por o julgar demasiado numeroso, como por ter demasiado poder: 'Num reino que apenas contém 2 milhões de almas, o número de monges, padres e freiras ultrapassa os 200 mil'. Além disso: 'Os frades acostumaram-se a viver na mais desenfreada libertinagem e, até ao dia de hoje, as freiras nada mais são do que cortesãs enclausuradas'. (...) Num dia a seguir a uma grande tempestade, relata o que lhe teria dito 'Milord Tirawley' sobre Portugal: 'O que fazer com uma nação cuja metade acredita no Messias e a outra no rei D. Sebastião?'" (Maria Filomena Mónica - O Olhar do Outro/ Estrangeiros em Portugal: Do Século XVIII Ao Século XX)
Quando, no dia seguinte a ter estado presente numa reunião da Socialist League, William Guest acorda, descobre-se, inesperadamente, num mundo maravilhoso onde não existem propriedade privada, sistema monetário, tribunais, casamentos, prisões, nem autoridade, e toda a estrutura social assenta na propriedade comum dos meios de produção. Porém, tal estado de felicidade não se atingira através da industrialização e do progresso tecnológico que libertaria a humanidade do pesado fardo do trabalho mas pelo regresso a uma idílica sociedade agrária respeitadora da natureza, na qual toda a actividade deveria ser livre, criativa e fonte de prazer. Durante a sua deslumbrada viagem de barco pelas águas límpidas do Tamisa, vai descobrindo igualmente que a Hammersmith Bridge que sempre conhecera feita de aço fora substituida por outra, em pedra, mais bela que a Ponte Vecchio de Florença, o barqueiro que o conduz veste-se à maneira do século XIV, a fétida Manchester fora apagada do mapa, e, de um modo geral, tudo à sua volta se parecia com uma tela de Bruegel.
Muito resumidamente, é este o enredo, situado em 2102, de News From Nowhere (1890), o romance de ficção política do escritor, socialista e figura central do movimento Arts & Crafts, William Morris, que, em Electric Eden, Rob Young cita, observando: “A mente britânica, até certo ponto, não parece ser capaz de imaginar o futuro senão sob a forma do passado”. Justamente aquilo que poderia dizer-se acerca de The Weight of the Sun, terceiro tomo do quarteto Modern Studies. O que, no caso, não é sequer depreciativo: essencialmente pastoral e bucólico, o álbum da banda de Emily Scott, Rob St. John, Joe Smillie e Pete Harvey (gente com pedigree do conservatório, ao rock, à folk, e à "sound art"), gerado entre o Lancashire e a Escócia, não fecha as portas ao presente mas, na sua equação de “classicismo e experimentalismo com uma canção pop no meio”, escutam-se distintamente ecos dos Fairport Convention (revistos pelos Stereolab), dos Velvet Undergound ("Sweet Jane" a viver numa eterna "Sunday Morning") ou do "chiaroscuro" dos Elysian Fields e Mazzy Star. Uma folk de câmara, outonal e suavemente psicadélica, impressionista e de harmonias tangenciais, a dar corpo às palavras de Rebecca Solnit que, em "The Blue Of Distance", evocam: “The world is blue at its edges and in its depths. This blue is the light that got lost”.
"SÓ AS PESSOAS SUPERFICIAIS NÃO JULGAM PELAS APARÊNCIAS" (XIII)
Donald Quintin (o género de figurão que torna redundantes as caricaturas do capitalista obeso e repulsivo), director para a Europa da Lone Star, e os moleques indígenas, Carlos Costa e Sérgio Monteiro
O pasquim direitolas online pediu mas não solicitou (o que é totalmente diferente)
Edit (21:05): interessante era fazer a experiência de ir subindo gradualmente os valores (100 mil, 300 mil, 500 mil, 1 milhão...) para averiguar qual o real preço dos "princípios"...
The Days Of Wine And Roses (1982) e Medicine Show (1984) – juntamente com contributos dos R.E.M., Violent Femmes, Green On Red, Los Lobos, Lone Justice e uma mão bem cheia de outros contemporâneos – tinham ficado para a história do penúltimo fôlego do rock norte-americano, numa elegante e acerada diagonal entre Neil Young, Velvet Underground e Television, desenhada a quatro mãos pelas guitarras altamente inflamáveis de Steve Wynn e do genial Karl Precoda. No entanto, após dois álbuns menos notáveis, a banda que o baterista Dennis Duck baptizara em homenagem ao colectivo experimental que reunira La Monte Young, John Cale, Tony Conrad e Jon Hassell, em 1989, separou-se. Vários projectos individuais e colaborações mais tarde, só em 2012 ensaiariam uma reunião e, em 2017 e 2019, voltariam a atiçar o lume com How Did I Find Myself Here? e These Times.
Foi numa das sessões de gravação deste último que, pelas 11 da noite, depois de 12 horas contínuas em estúdio, quando se preparavam para uma cerveja comunitária final, apareceu Stephen McCarthy, dos Long Ryders, de sitar na mão. “O engenheiro de som e o produtor ainda não se tinham ido embora, levámos as cervejas para dentro, lígámos a aparelhagem e, durante 80 minutos, mergulhámos numa fantástica jam session. Não dissemos uma palavra, ninguém deu quaisquer instruções, nada estava escrito, não havia regras de jogo estabelecidas. Apenas uma espécie de desafio implícito: ‘Não quero ser o primeiro a parar’. Só houve um pequeno intervalo quando o Mark Walton pousou o baixo e foi buscar shots de tequilla para todos. Mesmo assim, continuámos a tocar”. Nos meses seguintes, Wynn regressaria a essa alucinatória quase hora e meia, retalhá-la-ia, sobrepor-lhe-ia as percussões de Johnny Hott, o sax de Marcus Tenney e, aqui e ali, os seus textos recortadamente burroughsianos. Os 20 minutos iniciais de "The Regulator" apresentam-se como “uma viagem psicadélica, panorâmica, política e sonâmbula através de Nova Iorque” e, nas restantes (e extensas) quatro de The Universe Inside, o Miles Davis eléctrico, Hendrix, Soft Machine, Neu! e Ornette Coleman, pairam sobre esta “psychedelic, avant-jazz, freak-out, weirdo band we were always meant to be”. Parece que só terão posto fim à lendária jam inspirados pelo que Miles terá respondido a Coltrane quando este lhe confessou que, por vezes, não sabia como acabar um solo: “Basta tirar o sax da boca”.
"(...) Vem isto a propósito do actual uso e abuso da expressão 'marxismo cultural', muito comum hoje à direita mas também usada muitas vezes erradamente à esquerda, que, na sua globalidade, é cada vez menos marxista, mas ainda não deu por ela. Porém, o uso à direita é uma espécie de vilipêndio e insulto e, em muitos comentadores de direita, é comum para caracterizar uma espécie de polvo omnipresente, que lhes rouba as artes, as letras, o jornalismo, algumas universidades, as ciências sociais, a comunicação social, a educação e o ensino, e os obriga a refugiar-se nos espaços 'livres' dos colégios da Opus Dei, no Observador, nos blogues de direita, na Universidade Católica, nos lobbies ideológicos empresariais com acesso à comunicação, nalgumas fundações, nalguns articulistas, na imprensa económica, etc. Para bunker contra o 'marxismo cultural' já parece muito espaçoso, mas eles acham-no apertadinho (...)" (JPP)
Readings from Howard Zinn’s Voices of a People’s History of the United States
"Essa coisa chamada 'marxismo cultural', que atravessou o Atlântico, vinda dos Estados Unidos, não é uma categoria política, não é um movimento cultural, não é um conceito: é o nome de um espantalho, na sua versão cómica, ou um fantasma terrível, na sua versão mais negra, que pode provocar patologias do comportamento a quem é acometido por visões que dão corpo a este espectro. (...) A ideia de 'marxismo cultural' é uma máquina mitológica que funciona à custa de fantasmas, lugares-comuns, estereótipos, frases feitas, repetição de fórmulas que não necessitam de ser analisadas nem sequer compreendidas (...)" (AG)
The National & Sufjan Stevens - "Memories" (L. Cohen)
"We recorded Leonard Cohen's song 'Memories' from Death of a Ladies' Man as a wedding gift for Bryce and Pauline in August 2016. The process started with Thomas Bartlett establishing a foundation and circulated among all of us. Ragnar made a watercolor of the wedding ceremony in Paris"
Fiona Apple - Sessions at West 54th (Live in New York, 1997)
Trump death clock
"A billboard in New York City’s Times Square has begun showing a 'Trump Death Clock' tallying coronavirus deaths that its creator says can be attributed to the president's inaction. The digital counter was installed last week by filmmaker Eugene Jarecki, who said he wanted to make clear to the Americans the consequences of Donald Trump’s policies. The Trump Death Clock, which is also running on an accompanying website, uses an estimation that 60 per cent that American coronavirus deaths could have been avoided due to White House inaction in February" (daqui)
"Porque para perceber os gatos domésticos é necessário conhecer os seus parentes selvagens, em maio, o Odisseia sugere o especial 'Território Felino', um compacto de sete documentários em estreia exclusiva, para ver de sexta-feira a domingo, a partir do dia 15, sempre às 16h00"
Por entre explosivas erupções eléctricas e curtas tréguas de respiração, durante 38 segundos, no video de "Sweet", Dana Margolin, abre as páginas do seu diário: “My mum says that I look like a nervous wreck, because I bite my nails right down to the flesh, and sometimes I am just a child, writing letters to myself, wishing out loud you were dead, and then taking it back, and I used to be ashamed until I learned I love the game, and I slowly move away from everything I knew about you”. Mas, no momento em que, exactamente sobre a sílaba tónica de “about”, acende um fósforo nas cordas da guitarra, ficamos com a certeza absoluta de que aquele gesto acabou de entrar para a iconografia do rock’n’ roll. E, logo de seguida, passa ao modo de repetição obsessiva de palavras e ideias que nunca mais abandonará até ao fim: “You will like me when you meet me, you will like me when you meet me, you will like me when you meet me, you might even fall in love”. Fá-lo-á mais de duas dezenas de vezes até à conclusão dos cerca de 4 minutos da canção, tal como em todas as outras dez de Every Bad, o impressionante segundo álbum do quarteto de Brighton, Porridge Radio.
Em entrevista à “Pitchfork”, Margolin conta que, quando criança, sonhava ser poeta: “Ainda tenho um dossier de poemas que escrevi aos 8 anos. Sei vários de cor: ‘Sometimes you make friends, sometimes you break friends, sometimes you go around little bends’. Sinto imenso afecto pelo meu anterior eu, é uma pessoa diferente da que sou agora, mas esforçava-se imenso”. Na verdade, não tão diferente assim: o estilo de reiteração auto-encantatória, de vertiginosas litanias compulsivas, apenas se ampliou. "Lilac" – o mais óbvio e avassalador exemplo – são sete dezenas de versos compostos por apenas duas ou três súplicas aprisionadas num "loop" e incansavelmente marteladas até ao alucinatório colapso final. “Se repetirmos uma frase infinitamente, ela acaba por ganhar sentidos diferentes ou mesmo o oposto do que teria à partida”, diz Dana. Um arrasante jogo de massacre com poucas mais saídas que “So you want, want, want, want, want, and you want some more, and you want, want, want, want, want 'til you get sore”.
Aos 25'13", o maravilhoso momento em que a grande paladina dos Professores Karamba (que, confessa, "não sabe de medicina nem quer saber, não é cientista, não vai estudar e não lhe cabe a ela ter opinião") dá como exemplo de "medicina alternativa" que a História teria legitimado... a trafulhice pseudo-científica do Doctor Fraud!... (a impenetrável confusão do raciocínio seguinte também é admirável)
"Une fois encore leur monde est par terre. Et ce n’est pas nous qui l’avons
cassé. On évoque en ce moment le programme économique et social du
Conseil national de la Résistance ; la
conquête des droits syndicaux et les grands travaux du New Deal. Mais
bien des maquisards français avaient alors conservé leurs armes, et dans
la rue un peuple attendait l’échappée belle 'de la Résistance à la révolution'. Telle était d’ailleurs la devise d’un quotidien de l’époque qui se nommait Combat.
Quant à Franklin Roosevelt, il sut faire comprendre à une partie des
patrons américains que les révoltes ouvrières et le chaos social
risquaient de balayer leur capitalisme adoré. Il leur fallut donc
composer. Aujourd’hui, rien de tel. Confinées, infantilisées, sidérées autant que
terrorisées par les chaînes d’information en continu, les populations
sont devenues spectatrices, passives, anéanties. Par la force des
choses, les rues se sont vidées. Il n’y a plus ni « gilets jaunes »
en France, ni Hirak en Algérie, ni manifestations à Beyrouth ou à
Barcelone. Tel un enfant apeuré par le grondement de l’orage, chacun
attend de connaître le sort que le pouvoir lui réserve. Car les
hôpitaux, c’est lui ; les masques, les tests, c’est lui ; les virements qui permettront de tenir quelques jours de plus, c’est lui; le droit ou non de sortir — qui ? comment ? quand ? avec qui ? —, c’est encore et toujours lui. Le pouvoir a tous les pouvoirs. (...) Un jour, nous redeviendrons adultes. Capables de comprendre et d’imposer
d’autres choix, y compris économiques et sociaux. Pour le moment, nous
prenons des coups sans pouvoir les rendre ;
nous parlons dans le vide et nous le savons. D’où ce climat poisseux,
cette colère inemployée. Un baril de poudre au milieu d’une pièce, et
qui attend son allumette. Après l’enfance, l’âge ingrat…" (Serge Halimi - "Le Monde Diplomatique")
Puríssima verdade: se o pequeno comércio é autorizado a reabrir, por que motivo a mais antiga multinacional em actividade no ramo da superstição organizada não poderá reabrir também? (já garantir que irão desinfectar por completo o covil do Grande Manipanço Cósmico parece arrepiantemente blasfemo: então os super-poderes sobrenaturais não bastam para fazer fugir o coronacoiso a sete pés?)
Então não é que andam a lavar o cérebro aos lusos infantes dizendo-lhes que o Salazar era assim um bocadinho facho e gostava que o pedaço fosse visto como "um país trabalhador, rural, aldeão, feito de famílias tementes a Deus e à Igreja", quando, "de forma politicamente isenta”, deveriam ter sublinhado que o bondoso avô da pátria foi expressamente designado por deusnossenhor!
05 May 2020
SAIR DE CASA
Em 14 de Outubro do ano passado, Zelda Hallman, a "house-mate" de Fiona Apple, publicou no YouTube um video de 1 minuto no qual esta, qual Martha Graham doméstica, ensaia, no chão da sala, uma coreografia com a cadela Mercy – uma possante "boxer-pitbull" – que a arrasta impiedosamente por entre um piano e várias cadeiras enquanto ela, na medida do fisicamente possível, vai improvisando movimentos e poses. Nada de extravagante, afinal – apenas um passatempo de um dia normal na casa de Venice Beach, em Los Angeles, de onde, há anos, Fiona só muito raramente sai. Na verdade, muito antes de palavras como “quarentena” e “confinamento” se terem tornado omnipresentes, já esse era o seu modo de vida habitual o que teria, aliás, consequências na produção musical: entre a explosiva estreia, Tidal (1996), e When The Pawn... (por extenso, When the Pawn Hits the Conflicts He Thinks Like a King What He Knows Throws the Blows When He Goes to the Fight and He'll Win the Whole Thing 'fore He Enters the Ring There's No Body to Batter When Your Mind Is Your Might So When You Go Solo, You Hold Your Own Hand and Remember That Depth Is the Greatest of Heights and If You Know Where You Stand, Then You Know Where to Land and If You Fall It Won't Matter, Cuz You'll Know That You're Right) decorreriam três anos; desse para Extraordinary Machine seriam precisos seis; The Idler Wheel... (isto é, The Idler Wheel Is Wiser Than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More Than Ropes Will Ever Do) exigiria sete; e, para chegar ao actual Fetch The Bolt Cutters, necessitaria de oito. Além de que, com muitíssimo poucas excepções, desde 2012, não pisa um palco.
Quase poderia antecipar-se todo este percurso quando, nos MTV Video Music Awards de 1997 (nos quais, aos 19 anos, conquistaria o galardão de Best New Artist pela canção "Sleep To Dream"), ao aceitar o prémio, declarou: “Não preparei um discurso e ainda bem porque não irei fazê-lo da mesma forma que toda a gente. Que todas as pessoas a quem deveria agradecer me peedoem mas tenho de aproveitar o tempo que me é concedido. A Maya Angelou diz que, enquanto seres humanos no seu melhor, apenas podemos criar oportunidades. Vou, então, usar esta oportunidade do modo que entendo. Por isso, o que quero dizer – estão a ver, todos vocês, estão a ver este nundo? – é que este mundo é uma merda. E que vocês não deverão tomá-lo como exemplo para a vossa vida, não deverão seguir aquilo que pensam que nós imaginamos ser cool, o que vestimos, o que dizemos e tudo o resto. Sigam o vosso próprio caminho”.
Exactamente aquilo que, ainda que pagando um elevadíssimo preço na sua vida pessoal e artística, Fiona Apple fez e que, há semanas, no “Guardian”, reconfigurando-a na condição de “perfect artist for a time of crisis”, se apresentava em seis pontos: 1) não foge a temas difíceis (sempre falou dos problemas de depressão, ataques de pànico e transtorno obssessivo-compulsivo de que sofre e nunca escondeu ter sido violada aos 12 anos); 2) conta a melhor história acerca do que fazer para se libertar da cocaína (“Experimentem ir ao cinema com o Quentin Tarantino e o Paul Thomas Anderson a snifarem coca e nunca mais vos voltará a apetecer”); 3) pode ensinar-nos uma ou duas coisas sobre auto-isolamento (pouco sai de casa a não ser para passear a cadela em Venice Beach); 4) aprendeu a viver com mais juizo (a antiga consumidora de uma garrafa de vodka por dia, é, agora, abstémia e vegan); 5) não é politicamente desatenta (no Verão passado, ofereceu o valor das "royalties" de dois anos da canção "Criminal" a um fundo que presta apoio legal a imigrantes; compôs "Tiny Hands", acerca de Donald Trump – “We don’t want your tiny hands, anywhere near our underpants” –, para a Marcha das Mulheres, de Janeiro de 2017, em Washington; "For Her", do último álbum, foi escrita num acesso de fúria após a nomeação de Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal de Justiça); 6) não tem dúvidas quanto a prioridades (no final de 2012, cancelou uma digressão pela América do Sul devido ao agravamento do estado de saúde da sua anterior pitbull, Janet).
Foi, justamente, em 2012, que as primeiras moléculas de Fetch The Bolt Cutters começaram a juntar-se, num ainda vago conceito em torno da casa de Venice Beach, a que chamou “House Music”. Mas a primeira canção, "On I Go", inspirar-se-ia num cântico de meditação Vipassana que, colando fragmentos de textos antigos e novos, lançou para o caldeirão de ferventes "jam sessions" com o baixista Sebastian Steinberg (Soul Coughing), a baterista Amy Aileen Wood, e o guitarrista David Garza. Ferventes mas não propriamente, convencionais: todo o tipo de objectos potencialmente percutíveis – baldes, vasilhas, pedaços de metal e de madeira, mesas, paredes, palmas, utensílios de cozinha, as ossadas da cadela Janet que Fiona guarda num estojo –, cânticos, arquejos, gritos, miados (cortesia da actriz Cara Delevingne), latidos de cinco cães (Mercy, Maddie, Leo, Little, e Alfie, devidamente creditados), foram utilizados numa orquestra de matriz waitsiana. “A Fiona queria começar do chão para cima e, para ela, o chão é o ritmo. Parecia mais a criação de uma escultura”, contou Garza à “New Yorker”, ou como acrescentava Steinberg, “Tocámos do modo que os miúdos brincam ou que os pássaros cantam”. Em "I Want You To Love Me", Apple é totalmente explícita: “Blast the music, bang it, bite it, bruise it!”
Uma versão anterior – que os então presentes consideram ainda o seu mais extraordinário desempenho vocal – tivera lugar numa cadeia do Texas quando, em 2012, Fiona havia sido presa por posse de haxixe “Cantei-a durante a noite para me acalmar. Enquanto estávamos todos na sala de espera, eu cantava, estupidamente, de uma forma arrogante, para a câmara de vigilância. Não é, realmente, boa ideia ser sarcástico quando se está lidar com a polícia. Por muito que me custe, aprendi a lição”. Mas, nas condições ideais de temperatura e pressão, é esse precisamente o espírito ideal – bruto e cru – capaz de conferir tensão e perfurante intenção a treze canções de confronto e ajuste de contas. Em "For Her" (a tal incendiada pelo caso Kavanaugh), um coral ofegante e ritmicamente martelado salta de “Sniff white off a starlet's breast, treating his wife like less than a guest, getting his girl to clean up his mess” para o implacável “Good mornin’, good mornin’, you raped me in the same bed your daughter was born in”; "Relay", apontada a um objecto de desprezo (“I resent you presenting your life like a fucking propaganda brochure”), explode numa definição impiedosamente repetida (“Evil is a relay sport, when the one you burn turns to pass the torch”); e, na faixa-título, sobre moldura instrumental em processo de liquefacção, invoca Kate Bush (“I grew up in the shoes they told me I could fill, shoes that were not made for running up that hill, and I need to run up that hill, I need to run up that hill, I will, I will, I will, I will, I will”) para concluir com “Fetch the bolt cutters, I’ve been here too long”. Não por acaso, o pedido da detective Stella Gibson (interpretada por Gillian Anderson), num episódio da série de televisão The Fall, quando necessita de um alicate para libertar do cárcere uma mulher que o "serial-killer" Paul Spector sequestrara e torturara. Como se, agora, quando o mundo inteiro vive em prisão domiciliária, esse fosse o instante certo para Fiona Apple sair de casa.